Hospitais obrigados a comprar plasma ao Instituto do Sangue

Despacho do Governo, que surge após investigação, deverá ser publicado esta semana. Octapharma, cujo ex-administrador foi detido por suspeitas de corrupção, facturou mais de 250 milhões de euros nos últimos oito anos e continua a dominar mercado.

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Octapharma manteve o monopólio da venda dos derivados do sangue vários anos Nuno Ferreira Santos

Os hospitais públicos vão ser obrigados a recorrer, primeiro, ao Instituto Português de Sangue e Transplantação (IPST) para se abastecerem de plasma e derivados do sangue. O Ministério da Saúde quer regulamentar, por despacho, o negócio do plasma, que em Portugal continua a ser dominado pela multinacional Octapharma, criando alternativas para que o país deixe de estar dependente de empresas estrangeiras, apurou o PÚBLICO.

Mas vai ser necessário um período de transição para que o IPST seja dotado de condições para fazer o tratamento de todo o plasma dos dadores portugueses, o que passa pela inactivação do produto (processo para o tornar seguro). No despacho que será publicado esta semana, a tutela vai ainda criar uma comissão de acompanhamento, que terá representantes do IPST e de associações de doentes e de dadores.

O negócio do plasma (um componente do sangue) ficou sob os holofotes depois de Paulo Lalanda e Castro, ex-administrador da Octapharma, ter sido detido na quinta-feira por alegada corrupção no âmbito da Operação O negativo. A investigação do Ministério Público por suspeitas de favorecimento da multinacional já tinha levado, na terça-feira, à detenção do ex-presidente do INEM e da Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo, Luís Cunha Ribeiro, que ficou em prisão preventiva. Cunha Ribeiro presidiu ao júri do concurso que deu o monopólio do fornecimento do plasma à Octapharma (lançado em 2000 e adjudicado no ano seguinte). Foram ainda constituídos arguidos dois advogados e uma farmacêutica que foi dirigente da Associação Portuguesa de Hemofilia.  

O negócio do plasma e derivados do sangue é muito rentável: só entre 2009 e Setembro deste ano, a Octapharma ganhou mais de 250 milhões de euros com a venda a hospitais públicos, indicam os dados da Autoridade Nacional do Medicamento (Infarmed). Os números dos anos anteriores a 2009 - em que esta multinacional farmacêutica detinha o monopólio - não estão disponíveis.

Octapharma teve monopólio durante vários anos

O  monopólio da Octapharma manteve-se durante vários anos, apesar de o concurso inicial ter um prazo de validade de apenas três anos. O ex-secretário de Estado da Saúde Francisco Ramos admitiu ao PÚBLICO que assinou alguns despachos para prorrogar o concurso por mais um ano. O ministério, explicou, "estava preso na armadilha de haver poucos especialistas" nesta área e, se o concurso não fosse prorrogado "os hospitais ficavam sem plasma". A situação manteve-se assim até que, em 2008, outro secretário de Estado, este adjunto do ministro da Saúde, Manuel Pizarro, acabou com a centralização da compra, permitindo, por despacho, que os hospitais passassem a fazer aquisições individuais.

Ao PÚBLICO, Manuel Pizarro assegurou que tomou esta decisão para acabar com “o monopólio” da Octapharma em Portugal. Ao remeter para os hospitais públicos a decisão da compra, abriu todavia a porta a que pudessem ser feitos ajustes directos, mas lembra que a Octapharma perdeu "cerca de um quarto da quota". Apesar disso, não conseguiu “grande coisa em relação aos preços” praticados pela meia dúzia de empresas que disputam este mercado em Portugal. Os preços mantiveram-se elevados, reconhece.

Os dados do Infarmed indicam, de facto, que a quota de mercado da Octapharma diminuiu substancialmente: se, em 2009, o valor global das vendas da multinacional ao Serviço Nacional de Saúde ascendeu a 51,3 milhões de euros, em 2015, desceu para 22,8 milhões de euros. Mesmo assim, a multinacional continua a liderar este negócio que nos primeiros nove meses deste ano custou ao Estado 37 milhões de euros. Em 2015, os gastos totais ascenderam a 47,7 milhões de euros.

Mais concursos

O sangue doado divide-se em eritrócitos, plaquetas e plasma. Os dois primeiros são aproveitados, mas o plasma dos nossos dadores, uma espécie de sopa de proteínas muito valiosa e que salva vidas, acaba por não ser aproveitado em Portugal, que o compra a empresas estrangeiras, sobretudo à Octapharma.

Em 2013, o Instituto Português de Sangue e Transplantação começou a inactivar (tratar para garantir a segurança) o plasma dos dadores através de um método próprio mas apenas distribuiu aos hospitais 1600 unidades, segundo adiantou ao PÚBLICO. Quanto ao outro método de inactivação (por solvente detergente), esse permitiu já distribuir 16 mil unidades aos hospitais, mas, como a Octapharma é a única empresa que detém esta metodologia, o produto teve mais uma vez de ser adquirido à empresa líder de mercado. Os especialistas preferem adquirir este último, alegando que é mais seguro.

O plasma pode ser inactivado para ser administrado directamente aos doentes ou fraccionado para se retirarem componentes para produzir medicamentos que são usados nos tratamentos a doentes queimados e no âmbito de várias doenças, como a hemofilia, infecção VIH/Sida, cancros Estes últimos medicamentos são muito caros. 

Actualmente,o IPST tem cerca de 120 mil unidades de plasma armazenadas nas câmaras frigoríficas a aguardar pelo concurso do fraccionamento. Aprovado em 2015, o Programa Estratégico de Fracionamento de Plasma Humano previa que até Outubro desse ano estaria concluído o concurso para escolher a empresa que se vai encarregar desta tarefa. 

A Operação O negativo acabaou por dar empurrão decisivo ao procedimento que vai permitir que Portugal possa aproveitar cabalmente o plasma dos nossos dadores de sangue e não ficar completamente dependente de fornecedores estrangeiros. O actual secretário de Estado da Saúde, Manuel Delgado, disse na sexta-feira que o Governo estava a preparar o concurso público (já anunciado há mais de um ano) para seleccionar a empresa que vai tratar o plasma desperdiçado em Portugal, especificando que o que está a ser feito é "uma negociação privilegiada entre concorrentes”. Confrontado com as suspeitas de que houve um favorecimento da Octapharma neste negócio, o governante disse apenas que o monopólio daquela empresa se prolongou devido a “controvérsias técnicas”.

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