A Itália: após o “regicídio”, a normalidade. A dramatização segue dentro de momentos

O 5 Estrelas e o resto da oposição querem ‘eleições já’. Mas será o Presidente a decidir.

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É costume dizer: “A Itália exaspera, a Itália desarma, mas só raramente nos deixa indiferentes.” Depois de uma dramática, e dramatizada, campanha sobre o referendo constitucional e da demissão do primeiro-ministro, Matteo Renzi, as notícias baixam de tom e a política italiana parece voltar a uma aparente normalidade. Normalidade são os jogos florentinos em que, a menos que o spread desate a subir, a Itália é colocada entre parênteses e dá lugar às lógicas partidárias. Como eles gostam de dizer: È la politica, bellezza!

A iniciativa está nas mãos do Presidente, Sergio Mattarella, que recusa o cenário de eleições antecipadas antes de haver nova lei eleitoral e que terá de escolher entre a manutenção do actual Governo com novo primeiro-ministro, nomear um governo “institucional” ou, inclusive, reconduzir Renzi para chefiar um governo “político” até à aprovação de nova lei eleitoral. Mattarella tem razão quanto ao absurdo de eleger o Senado com uma lei e a Câmara dos Deputados com outra.

Mas a oposição tem urgência em capitalizar o resultado de 4 de Dezembro e a possível divisão do Partido Democrático, de Renzi. O Movimento 5 Estrelas, o vencedor do referendo, tem pressa e pede eleições na Primavera com a lei eleitoral (Italicum) corrigida pelo Tribunal Constitucional (decisão a 24 de Janeiro), o que não resolve o problema do Senado pois o Italicum apenas contempla a Câmara. A Liga Norte, de Matteo Salvini, e a Força Itália, de Berlusconi, fazem a mesma exigência — embora o magnata possa mudar de opinião. O La Repubblica previne que “as eleições não podem ser um salto no escuro ou, pior ainda, uma roleta russa”.

As reformas

Renzi tem várias cartas na mão. Pediu eleições se todos os partidos não acordarem no apoio a um novo governo. Diga-se de passagem que o ex-primeiro-ministro não tenciona ir para casa nem abandonar a liderança do PD. Todos fazem bluff. O cenário mais favorável a Renzi seria esperar fora do executivo pelas legislativas. Tem de fazer esquecer que foi uma desastrada manobra sua que abriu esta crise.

O balanço da sua governação de “mil dias” é considerado positivo pela maioria dos analistas e apreciado no estrangeiro. Quando assumiu o Governo em Fevereiro de 2014, definiu como meta a “reforma da Itália”. As reformas multiplicaram-se em marcha acelerada, contrastando como os antecessores das últimas décadas e ultrapassando os obstáculos que paralisaram o Governo Monti.

Fez reformas económicas, modernizou a justiça, introduziu a responsabilidade civil dos magistrados, tentou desburocratizar o Estado, modernizou o sistema de pensões, reformou a escola (com grande resistência dos professores), legislou contra a corrupção, fez a lei das uniões de facto, pensando nos casais gay.

O ponto crucial foi o Job’s Act, a reforma laboral, iniciada por Monti (lei Fornero) e visando a introdução de um modelo de “flexi-segurança” que deveria ser a trave mestra de uma política de crescimento. Com isso comprou uma longa guerra com a maior central sindical, CGIL (de matriz comunista e próxima do PD). Um dos objectivos era proteger os mais precários: combater o apartheid entre os que têm emprego fixo, e são superprotegidos, e os precários que têm raros direitos e escassa protecção. A batalha mais dura foi, tal como durante o Governo Monti, a alteração da lei dos despedimentos.

O que acontece é que os resultados demoram e não dependem apenas da lei nem da opção de Renzi por uma política de crescimento. A produtividade estagna. O crescimento económico não chegou a 1% e a taxa de desemprego não baixa. É muito elevado do desemprego dos jovens.

O bicameralismo perfeito

Renzi sempre quis coroar as várias reformas com uma mudança drástica do sistema político italiano, pondo termo ao bicameralismo perfeito: deputados e senadores têm as mesmas competências e tanto a legislação como a confiança no Governo têm de ser votadas em ambas as câmaras. É uma anomalia italiana, caso talvez único na Europa. As duas câmaras têm frequentemente composição política diferente, já que são eleitas em círculos diferentes e por diferentes eleitores — só se vota para o Senado com mais de 21 anos. Um executivo pode ter maioria na Câmara mas, se a não tiver no Senado, arrisca-se a ver as decisões bloqueadas e a fazer compromissos bastardos. Este era o ponto vital do referendo.

Isto não é uma bizarria nem um problema de “pesos e contrapesos”. É uma herança histórica. O bicameralismo perfeito foi adoptado pela Assembleia Constituinte no pós-guerra para exorcizar a memória do fascismo e de Mussolini. Visava impedir que um governo com maioria absoluta na Câmara pudesse tornar-se despótico.

O poder que Renzi teria no caso de reforma do Senado não seria maior do que a de qualquer outro primeiro-ministro europeu, da britânica Theresa May à alemã Angela Merkel.

Diz-se na Itália que constitucionalistas e politólogos apoiavam o “sim” e os juristas o “não”. Para estes e para um grande número de intelectuais, Renzi aspirava ao autoritarismo.

Marc Lazar, historiador da Itália contemporânea, explica outra raiz actual do fantasma do cesarismo. “Um enraizada inquietação em certos meios políticos — e especialmente entre os intelectuais de esquerda — diz respeito à ideia profundamente ancorada da doentia imaturidade do povo italiano, da ausência quase estrutural de civismo e da sua fraca assimilação dos costumes democráticos.” A era de Berlusconi reforçou este sentimento: os eleitores do magnata eram por definição “eleitores fascinados”, ignorantes ou deseducados pela televisão. Esta visão da esquerda favoreceu, de facto, Berlusconi.

Observa outro politólogo, Angelo Panebianco, que “os que agora venceram, os que realizaram o ‘regicídio’, os que finalmente abateram o tirano, representam o que de mais velho há (culturalmente falando) na política italiana”.

Renzi caiu por erros políticos que não soube prever, o modo como forçou a revisão constitucional, que tinha como adquirida, e uma lei eleitoral (Italicum) que foi aprovada no Parlamento mas que depois o isolou, numa vasta coligação heterogénea, da extrema-esquerda à extrema-direita — ele somou 40%, o resto quase 60%. Quanto aos eleitores, comportaram-se como noutros referendos: uns seguiram os seus partidos tradicionais, outros mostraram ao primeiro-ministro um “cartão amarelo”.

A “dramatização” foi de momento estancada. Mas não demorará a regressar. A situação financeira é muito grave e não se vê no horizonte uma perspectiva de mudança no sistema político italiano.     

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