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A família de Gisela

Desde o disco de estreia que a fadista se vem rodeando de uma equipa de “irmãos” de que fazem parte o produtor Frederico Pereira, o guitarrista Ricardo Parreira ou a rapper e letrista Capicua.

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Capicua, nas letras, e o guitarrista Ricardo Parreira regressam, com os outros “irmãos” que estão com ela desde o primeiro disco NFACTOS/DATO DARASELIA e Miguel Manso

“Eu nunca faço nada sozinha”, diz Gisela João, partilhando mais glórias do que fracassos. Fala em concreto da escolha do reportório, que tem início no seu arrebatamento com os poemas, mas que depois é discutido com toda uma equipa, desde o produtor Frederico Pereira e do manager Helder Moutinho, ao editor Francisco Vasconcelos (da Valentim de Carvalho) e aos músicos Ricardo Parreira, Nelson Aleixo e Francisco Gaspar (o seu consultor de documentários). Há uma noção de família à sua volta que se sente de uma forma muito clara. Em 2013, quando lançou o disco homónimo que a catapultou para um estrelato que, sendo surpreendente pela sua dimensão, já se fazia anunciar por quem antes a tinha ouvido a cantar no Sr. Vinho (casa de Maria da Fé), na Tasca da Bela ou em espectáculos com Helder Moutinho, fez questão de incluir uma guitarrada que deixasse o talento de Ricardo Parreira espraiar-se para lá do acompanhamento. Não era apenas um momento de descanso, para a voz voltar a reclamar o seu espaço. Era uma chamada de atenção para aqueles que partilhavam o disco consigo, não deixando que ficassem sempre em segundo plano.

Com a excepção de Nelson Aleixo, os músicos de Nua são os mesmos, a fotografia continua a cargo de Estelle Valente, Capicua volta a ter carta-branca para trocar as voltas a um fado tradicional e a produção leva novamente a assinatura de Frederico Pereira. Frederico apareceu na vida de Gisela via MySpace, em 2009. Enviou-lhe uma mensagem dando conta que tinha uma banda e que se encontravam a renovar a formação com vista à preparação do primeiro álbum. Precisavam de uma voz. Gisela despedia-se de uma primeira passagem por Lisboa (na sequência de um projecto que falhara antes de arrancar) e juntou-se aos Atlantihda. “Nunca lhes menti e sempre lhes disse: ‘Vou só emprestar-vos a minha voz porque eu quero os meus fadinhos’. Foi aí que conheci o Frederico e tornámo-nos irmãos.”

Toda esta gente que a rodeia, admite, pode chamar-se “um núcleo de irmãos” – são aqueles com quem partilha as suas dúvidas, em quem confia para lhe chamarem a atenção se estiver a cometer o maior erro da sua vida e se estiver a dar um falso sem se aperceber disso. “Preciso destas pessoas à minha volta”, reconhece. “Quando há um bloqueio qualquer aqui dentro em que parece que não consigo cantar, se os tiver comigo pode vir quem quiser e aquilo sai-me.” Com Frederico tem “discussões de meia-noite”, choques frequentes, embora saiba que esses conflitos são sempre motivados pelo mesmo objectivo de tomar as opções certas para a sua música.

Se é a mão de Frederico que comanda os pormenores de que são feitos Gisela João e Nua, respondendo, por exemplo, pela ideia de criar vários planos para os instrumentos em Labirinto ou não foi nada que sugiram, de facto, a ilusão de um labirinto, ou enxertar em Senhor extraterrestre citações de Avé Maria e Uma Casa Portuguesa, é também a ele cabe peneirar as muitas ideias da fadista para o reportório a gravar em cada disco, eliminando redundâncias em termos de linguagem musical e evitando contrastes demasiado gritantes. Gisela pede também a opinião dos músicos, tentando certificar-se de que o prazer na interpretação de cada tema não se esgota em si – “se há alguém que não está a ter tanto prazer a tocar, isso incomoda-me”, afirma.

Admiradora confessa da discografia que Camané tem partilhado com a constância da produção de José Mário Branco, os poemas de Manuela de Freitas – a quem Gisela já pediu um texto, esperando apenas o fado certo ou o momento em que a sua vida se cruze de forma mais inequívoca com a história para finalmente o gravar – e o trio de músicos composto por José Manuel Neto, Carlos Manuel Proença e Carlos Bica, é impossível não perceber nas suas escolhas uma tentativa de conseguir a mesma cumplicidade musical personalizada e feita de um crescimento conjunto que cole nos originais a pele “de um fado tradicional com cem anos”.

As voltas de Capicua

A aposta no mesmo conjunto de músicos levou também a que, em Janeiro de 2015, Gisela João abordasse os concertos nos Coliseus de Lisboa e Porto com vários dos temas que acabou por gravar em Nua. Meses antes de começar a gravar o álbum, quis apresentar algumas das composições ao vivo por saber que, diante do público e tendo de reagir em palco, estas “ganhariam outra vida e outra força”. Um dos temas então experimentados foi Noite de São João, segunda colaboração com a rapper Capicua, sugerida inicialmente por Francisco Vasconcelos para dar uma nova cara ao clássico (A casa da) Mariquinhas no disco de estreia, desta vez responsável por transferir de Lisboa para o Porto o poema do Fado Triplicado que Berta Cardoso popularizou no seu tempo.

“Como era uma noite de São João em Lisboa e eu nem sabia quando fui viver para a cidade que o São João se comemorava por lá, quando ela me ouvia cantar o Triplicado dizia-me que um dia havia de me escrever a história no Porto”, conta a fadista. “Houve um dia que me disse ‘Está aqui, toma’. E ficou incrível.” Se bem que nem todos tenham partilhado a mesma opinião. Da mesma maneira que houve quem lhe escrevesse indignado e dizendo que “Amália deve estar a dar voltas na tumba” por Gisela andar a cantar sobre extraterrestres (desconhecendo que fora Amália a intérprete original de Senhor extraterrestre), houve também quem se indignasse por a letra de Capicua pôr a cantora romanticamente na Foz com um “moço dos carros de choque” até serem interrompidos por uma Rute pronta para reclamar o seu homem à força de lambadas. Na canção, Gisela acaba por engatar “um mais bonito” surgido em seu socorro.

“Durante tantos anos, o fado esteve muito distante do povo, tão elitizado e tão seguro”, queixa-se Gisela, terminando a frase numa simulação de vómito. “E a génese perdeu-se um bocadinho. O fado, tal e qual como o hip-hop, falava das facadas e das pelejas que havia no meio das ruas.” Agora, depois de Maria do Rosário Pedreira com Aldina Duarte, volta o fado a ser também, por acção de Gisela e Capicua, cenário de triângulos (ou quadrados) amorosos dos dias de hoje, cantado aqui com a ligeireza de quem sabe bem a ferroada desferida no outro que, ao querer trocar, acabou trocado.

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