Tudo em que Gisela toca é fado (e ouro)
Depois de um primeiro álbum em nome próprio que recolheu todos os elogios possíveis, Nua chega de surpresa e mostra que Gisela João não se deixou amedrontar. Amália Rodrigues, Beatriz da Conceição, Cartola, Capicua ou Chavela Vargas, todos eles são aqui fado puro e duro.
Gisela João gosta de cantar. Apenas isso. Choca-se quando lhe dizem que tem de se convencer que passou a ser também um produto. Não quer saber se faz caras feias num concerto, se sai do palco de vestido rasgado, arranhada, magoada ou despenteada. Dá-se mal com as expectativas geradas pela aclamação generalizada do seu primeiro álbum. Quase se deixou tomar pelo pânico quando, nas suas saídas nocturnas, havia sempre quem a abordasse para lhe perguntar pelo segundo álbum e lhe deixava esse ambíguo conselho a raiar a reprimenda “tem de ser melhor do que o primeiro, tem de ser uma bomba”. “Isso começou a tolher-me um bocado”, confessa ao Ípsilon uma semana antes de lançar (hoje) numa operação surpresa o seu segundo álbum, Nua.
Aprendeu desde miúda a defender-se, a rir-se exageradamente e a falar mais do que o costume para espantar o medo (com que estava habituada a conviver) e silenciar o choro, ocupando-se com tudo o que possa roubar-lhes espaço. “Viro a coisa ao contrário e agarro o touro pelos cornos”, diz. “Vou com medo mas vou. E, se for preciso, vou mais fundo do que me era pedido.” Só que de pouco lhe podia valer toda a preparação que trouxesse até aqui. De pouco lhe podia valer a experiência amadora com os Atlantihda para o dia em que se seguiu a dela se dizer um pouco por todo o lado que a sua estreia discográfica era auspiciosa, que desde Amália não se ouvia alguém capaz de cantar com tamanha propriedade o mais destroçado Fado Menor e a mais pespineta das canções populares. Como é que se faz um disco depois de Gisela João? Como é que se repete esse embevecimento? Como é que se traduz a música aqui inscrita como se fosse uma matemática que eleve Nua uns degraus acima? Como é que se faz melhor?
Não bastava Gisela já ter peso suficiente aos ombros com toda esta expectativa em relação ao seu passo seguinte, estava ainda muito consciente e desperta de que o seu público interesse pela música electrónica, ampliado por experiências com Nicolas Jaar, Capicua ou Linda Martini, engrossava ainda as expectativas para um disco que teria de ser melhor do que o primeiro, mas também trazer consigo duas ou três piruetas que justificassem o investimento afectivo do povo numa fadista que levava o desprezo pelas rígidas fronteiras musicais junto ao peito e parecia pronta para quebrar todas as barreiras, partindo a loiça da tradição com estrondo.
“As pessoas talvez estivessem à espera que eu aparecesse a fazer o pino e a mudar o capacete”, antecipa. “E isso começou a mexer comigo, começou a tirar-me a vontade de comer e a deixar-me realmente nervosa. É mesmo difícil. O primeiro disco saiu, correu lindamente e, de repente, tinha de gravar outra vez com aquela sombra que era a minha própria sombra. Até que houve um dia em que estava com as minhas gatinhas, os meus pensamentos e, pela primeira vez, consegui distanciar-me e perceber o que me estava a acontecer e o que era a minha vida agora.” A conclusão foi simples: aquilo que tinha de fazer era reconstruir o processo de Gisela João (2013), escolher o reportório guiada pelo seu amor aos poemas – “e ainda bem que o outro ganhou este Nobel porque sempre me chateou haver quem dizia ‘não chames poemas, chama letras’; não, são poemas”, comenta – e calar as vozes à sua volta.
Nua, num corajoso, honesto e sublime statement, não introduz nenhuma mudança de vulto no percurso musical da Gisela João que conhecemos como fadista. Nua é a sua voz, rodeada de guitarra portuguesa, viola de fado e baixo, a cantar as palavras que lhe deixam o corpo num desassossego e a fazem trazer as emoções ao pé da boca. Daí Nua, o título. Não há plumas, nem disfarces, nem cirurgias estéticas para dar um outro brilho ao fado. É o fado a bastar-se a si próprio, a depender da interpretação, a não se esconder atrás de nada nem ninguém.
Romântica e saudosista
A certeza de que tudo vai bem no reino de Gisela João dá-se aos 40 segundos de Nua. Assim que lhe ouvimos o primeiro verso de Fado para esta noite, é como se a sua voz nos cercasse por todos os lados e instantaneamente fôssemos tragados para dentro do seu mundo. É um fado vindo de longe, feito de uma solidão vizinha do desejo, de uma cama de lavado que cheira a alfazema, com almofadas de fitas, colcha de chita e um santo alumiado na cabeceira. Parece uma imagem demasiado remota para uma fadista de hoje, que se entusiasma a falar do recente concerto em Lisboa dos berlinenses do techno Moderat, que se diz capaz de perder a cabeça para apanhar um voo que a leva a assistir à estreia de uma peça do minimalista Steve Reich, que ocupa os palcos com vestidos vistosos e que pode ser apanhada a fazer stage diving. Mas Gisela não esconde ser uma romântica e não resiste a um poema [de César de Oliveira, popularizado por Beatriz da Conceição] que descreva um solitário colocado à janela com “duas rosas que estão a atirar beijos vermelhos, sem boca para os dar”. “Isto não é incrivelmente lindo? Ou eu é que sou romântica de mais?”, pergunta.
Romantismo e saudosismo são para Gisela indicativos de memória e de uma ligação ao passado que permite inscrever-se na tradição do fado, adoptar a sua linguagem e viver através de poemas escritos há meio século. E que encaixam na convicção da fadista de que não há valor intrínseco na novidade. “Novidade pela novidade ou chocar por chocar – sei que vivemos nessa era, mas não concordo com isso. Acho que as coisas devem ser feitas com um porquê”, argumenta. Daí que Gisela privilegie um reportório que homenageia em palco e em disco, recuperando temas de Amália Rodrigues, Beatriz da Conceição, Berta Cardoso ou Argentina Santos e não se sinta tentada em investir em álbuns de inéditos: “Não tenho problema nenhum se chegar aos 70 anos e tiver deixado uma carreira apenas de intérprete de coisas antigas.”
O que conta, o que sempre contou, é a forma como se relaciona com os poemas, como as palavras a emocionam e a fazem quase dar a vida por cada verso. “Não me agrada a ideia de ser obrigada a ter um disco só de originais se eles não me disserem nada. Se não os sentir vai sair a meio-gás, falso. E eu gosto de ouvir uma música e que aquela merda tenha sangue, que me chegue às entranhas.” E compara com os tempos em que trabalhava numa loja de roupa, no Porto, em que “vendia muito mais rápido as coisas de que gostava imenso do que as outras de que não gostava”.
Nestas contas de escutar com o corpo todo, de se emocionar com uma canção e se apaixonar por um poema até acreditar que é a sua vida que está ali inscrita, Gisela não esconde a identificação com Amália e a sua obra acima de todas as outras. Em Nua, canta uma dúzia de temas da maior figura do fado, incluindo Senhor extraterrestre (tema oferecido por Carlos Paião à fadista em 1982, estava Gisela ainda por nascer, e que é um ovni-pop na discografia amaliana). “A Amália inspirou-me, teve uma percentagem muito grande de responsabilidade no meu desenvolvimento, naquilo que sou hoje, e a escolha de reportório dela era incrível, tinha pessoas incríveis à sua volta, que escreviam muito bem, ela interpretava extraordinariamente e tudo isso me inspirou. Eu sentia aquelas músicas como se fossem minhas e ao cantá-las faço-o à minha maneira. Não canto como a Amália cantou, porque não vivi a vida dela nem vivi dentro da cabeça dela. Não quero copiar a Amália nem ser melhor mem pior. Quero ser eu.” Por isso, esses temas que funcionam também como homenagem, acredita que farão sempre parte do seu percurso, da mesma maneira que não se imagina a evitar cantar o reportório de Beatriz da Conceição ou de Camané. Em Manuela de Freitas e José Mário Branco, aliás, e no seu trabalho continuado com Camané, reconhece outros professores que foi tendo à distância, sem os conhecer, mas com os quais aprendeu os caminhos a trilhar dentro de cada fado.
Cantar Amália, sublinha Gisela João, não é querer a comparação, pôr-se em bicos dos pés para parecer que tem a mesma altura, colocar-se numa corrida para ganhar o título de sucessora. É, afinal, reclamar o seu espaço com aquilo que lhe é próximo, afastando essa ideia que detesta de “estarem sempre a apontar a nova Amália, a nova Amy Winehouse, o novo Sinatra ou a nova Billie Holiday”. “Isso irrita-me, é menosprezar a beleza da nossa vida, de estarmos aqui e sermos todos diferentes.” Essa identificação em brasa, que acontece de forma tão arrebatada com o património do fado, pode irromper também onde menos se espera. Há pouco mais de uma semana, Gisela colocou na sua página de facebook um vídeo em que trauteava por cima de Lenço enxuto, dueto de Samuel Úria com Manel Cruz, reclamando que aquela música deveria ser “sua”. “Era um vídeo [hashtag: ‘quem-vos-enxotava-era-eu-aos-dois’] um tanto ridículo”, ri-se. “Mas aquilo devia ser para mim. E o Samuel não teve a inteligência [risos] de perceber que me devia ter dado aquela música.”
É um exemplo de como Gisela João se apega às músicas e sofre – mesmo – quando não as pode reclamar para si. Outro caso é o de O meu coração tem dias, autoria de João Monge e Zeca Medeiros para o último álbum de Helder Moutinho, com o qual o fadista também brinca – “ele [Helder], sendo meu manager, devia ter vergonha de gravar aquela música, devia ter-ma dado.” Piadas à parte, Gisela acredita que tudo isto faz parte de ser fadista, de viver contagiada pelos versos e acreditar que sem poemas que dêem sentido aos dias há qualquer coisa sempre em falta. “Há muita gente que se diz fadista e não sabe o que é ser fadista”, atira sem alvo explícito. “É muito bonito mas é muito pesado, porque se vive assim, dentro dos poemas, olha-se para todas as situações da vida como se estivesse a ver uma música e um poema.”
Por isso, a escolha de reportório para um disco é feita de muitas lágrimas e escolhas tão sofridas que a cantora mais parece arrancar pedaços de si e jogá-los à rua. Ter de abandonar uma música e depois vê-la ganhar outra vida noutra voz é algo que lhe dói. Não por inveja ou por pertencer a outros, garante, mas por deixar de ser sua.
Fados e subtilezas
Em Lenço enxuto, indiferente ao que qualquer outro possa achar, Gisela João ouve um fado. Da mesma maneira que o ouve nos sambas de raiz de Cartola ou na maior de todas as rancheras que é La llorona, canção tradicional mexicana impossível de arrancar a Chavela Vargas. No caso de Cartola, que a fadista conheceu quando uns amigos brasileiros a ouviram cantar no Porto e lhe quiseram mostrar que a música do seu país não era só Daniela Mercury e Carnaval (nem Elis Regina, Chico Buarque e Maria Bethânia que a sua mãe muito ouvia), essa apropriação é especialmente tocante em As rosas não falam. O tema encerra o arranque fulgurante de Nua, quatro temas soberbos e arrepiantes em que a fadista prova que nenhuma da adjectivação que mereceu com o primeiro disco foi mal gasta.
Desses quatro primeiros temas podemos extrair o retrato completo de Nua. Fado para esta noite é Gisela no absoluto zénite da sua interpretação, enfiando-se dentro do poema e cantando com um travo de fado clássico, como se nos chegasse enquanto gravação esquecida de uma das grandes fadistas dos anos 40 e 50. Carrega consigo o peso do tempo e uma aura automática de fado antigo, resultantes também da gravação no Palácio de Santa Catarina e numa sala do Pestana Cidadela Cascais, espaços abertos que trazem a voz com um rasto amplo que se torna mais explícito em Há palavras que nos beijam. Com o dedo na produção Frederico Pereira os temas de Nua ficam assim a pairar e nunca pousam de facto. A Senhor extraterrestre cabe a marca popular e foliona de Gisela – repetida com brilhantismo em Lá na minha aldeia e Noite de São João –, e em que a guitarra de Ricardo Parreira desenha não apenas uma vertigem de notas em rápidas danças mas se mostra capaz de desacelerar para pontuar a frase “Deus lhe pague” com uma citação de Avé Maria.
As rosas não falam é o exemplo perfeito do faro de Gisela em detectar fado noutros lugares. “Aquilo para mim é um fado desde sempre, o homem fez um fado mas não tinha uma guitarra portuguesa ali ao lado”, argumenta. “É o teor da letra, o que a melodia faz sentir, o mesmo sentimento que o fado tem. Estou muito orgulhosa porque acho que aquilo ficou um fado. Podem atirar-me uma pedra de betão armado à cabeça que não me importo.” Não atirem. Porque ficou um fado admirável que poderá aqui iniciar uma outra longa vida fora do samba. A outra canção de Cartola, um daqueles raros escritores de canções que esbanjam sabedoria feita de simplicidade – “de cada amor tu herdarás só o cinismo”, diz a canção –, O mundo é um moinho foi dedicada à sua filha adoptiva e à questionável escolha dos destinatários do seu amor – há quem sugira a pouco comprovada tese de que a rapariga estaria a enveredar pela prostituição e estes versos eram uma advertência contra essa vida. Para Gisela, tornou-se sinónimo da velocidade a que se vive hoje, do investimento nas relações muitas vezes admitir pouco mais do que a superficialidade e interpretar a intimidade como uma conquista armadilhada.
Os novos sentidos atribuídos por Gisela são, de resto, essenciais para a forma como reclama cada fado. Este Labirinto ou não foi nada, poema de David Mourão-Ferreira no Fado Vianinha, outro dos momentos magníficos de Nua – a raiar o divino quando, num repente, a guitarra portuguesa por momentos se cala e é como se esbarrássemos em Gisela, sem distância entre ouvinte e intérprete –, é animado por uma associação particular que a fadista sabe que é muito sua. Apaixonada pelos múltiplos sentidos da poesia e pouco importada com os mandamentos dos “professores de português que se regem pela caixinha que ensinam na escola a dizer que um poema é explicado assim ou assado”, ouve este “talvez houvesse uma flor / aberta na tua mão / podia ter sido amor / e foi apenas traição” como o retrato possível de um/a transexual, “alguém que vem ao mundo, nasce num corpo onde não se encontra, atraiçoado pela natureza”.
Llorona, que Gisela decidiu gravar quando os discos não eram senão uma miragem na sua vida, ao ver e ouvir Chavela Vargas no biopic Frida, de Julie Taymor, funciona também como correspondência musical do luto que confessa fazer todos os anos pela morte de Lhasa de Sela – que, não tendo gravado o tema, parecia portadora do mesmo estarrecedor lamento da canção agora tornada fado. Llorona encerra Nua, mas voltando ao início Fado para esta noite parece transportar já essa centelha de Chavela no seu imenso charme como que vindo do fundo do tempo.
Nua está carregado de subtilezas, mesmo que obedeça a um padrão de absoluta simplicidade. Só que a nudez do título é felizmente enganadora. É uma nudez que, mostrando, esconde também. E exige usar as unhas para esgravatar no interior de um disco que num primeiro contacto apenas revela a superfície. Não sugere nenhum fim por mostrar já tudo. É só o início.