Descriminalização das drogas: batalha foi ganha, mas faltam salas de chuto
Quinze anos após a descriminalização, diminuíram doenças infecciosas, mortes por overdose e presos por crimes ligados à droga. Mas nem tudo é cor-de-rosa: falta aposta nas medidas de redução de riscos.
Nem o consumo aumentou nem o país se tornou um ponto de encontro dos toxicodependentes de outras partes do mundo: já passaram 15 anos desde que Portugal descriminalizou o consumo e a posse para uso próprio de drogas, e o balanço (que começará a ser feito esta terça-feira num encontro com dezenas de especialistas na Biblioteca Almeida Garrett, no Porto) é consensualmente positivo: diminuiu a taxa de infecção por VIH entre os toxicodependentes, as mortes por overdose baixaram para as 33 registadas em 2014 (eram 94 em 2008, antes disso não há dados directamente comparáveis) e a população condenada a pena de prisão por crimes relacionados com estupefacientes, que em 2001 representava 41% do total de reclusos, diminuiu para 19% do total de reclusos em 2015.
“No passado prendia-se por consumo uma centena de pessoas por ano e agora esses números são absolutamente residuais, isto é, os que estão condenados por crimes relativos a estupefacientes são essencialmente traficantes”, enquadra o investigador Jorge Quintas, autor de um livro sobre regulação legal do consumo de drogas, para quem o principal mérito do chamado “modelo português” foi ter conseguido “despenalizar todas as drogas sem que isso tenha causado uma perturbação espectacular nos padrões de consumo”.
Mais do que através dos números, o balanço mede-se pelo facto de os toxicodependentes terem deixado de ser perseguidos criminalmente para passarem a ser tratados como doentes, numa mudança de paradigma que transformou Portugal num exemplo de boas práticas no estrangeiro. “No final dos anos 90 tínhamos cem mil utilizadores problemáticos de heroína por via injectável, era o inimigo número um que tínhamos de enfrentar. Hoje, se tivermos metade disso será muito, e a maior parte deles está em tratamento”, indica João Goulão, director do Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências (SICAD).
“A descriminalização foi importante”, concorda o investigador Luís Fernandes, mas “as vantagens do ‘modelo português’ passam muito pela aposta na redução de riscos e minimização de danos e pela ideia de que as drogas não se resolvem com instrumentos jurídicos e policiais”. Para este investigador da Universidade do Porto com décadas dedicadas ao estudo do consumo de drogas, “não é verdade que o problema da heroína esteja em vias de ser resolvido”.
E entre o que faltou fazer está, em primeiro lugar, a formação dos polícias, para os tornar aliados do tão celebrado “modelo português”. “Continuamos a ter testemunhos de violência policial nos territórios psicotrópicos.
A lei pode dizer que a detenção para consumo próprio em quantidades que não excedam o consumo médio durante um período de dez dias deixou de ser crime, mas o polícia não tem de pesar a droga apreendida e, se lhe apetecer chatear alguém com droga, pode fazê-lo”, aponta. Em segundo, falta “reinvestir nas medidas de redução de riscos, que estão estagnadas, o que implica formar técnicos nesta área”.
Salas importantes para consumidores de heroína
Por último, falta avançar com as famosas “salas de chuto”. “Não se esgotou a sua necessidade. Enquanto houver consumos de drogas duras em certos pontos das cidades e com consumidores ‘crónicos’, estas salas justificam-se, sobretudo para os consumidores de heroína e de base de coca. Estas salas podem ajudar a proteger as populações, aliás a evidência recolhida mostra que funcionam como ‘pacificadores territoriais’”, argumenta Luís Fernandes, para quem “o único motivo por que não avançaram foi a falta de coragem política”.
Sobre as salas de consumo assistido, que voltaram este ano a ser defendidas, quer em Lisboa quer no Porto, João Goulão sustenta que “não houve condições políticas” para as fazer avançar na altura em que eram mais prementes, ou seja, quando o consumo injectável era a regra.
Tantos anos volvidos, apesar de reconhecer que a crise provocou recaídas entre os antigos consumidores de heroína, nomeadamente por via injectável, o director-geral do SICAD diz ter dúvidas de “que ainda se justifiquem”. “Não tenho nenhuma resistência de princípio, mas precisávamos de ter uma estimativa mais realista dos utilizadores de crack e da dimensão da população que poderia beneficiar destes dispositivos”, contra-argumenta.
Mas nem na versão do coordenador nacional dos problemas ligados à droga o balanço se pinta exclusivamente em tons rosa. “Durante algum tempo havia uma relativa facilidade em promover a empregabilidade de toxicodependentes em recuperação e hoje é bastante mais difícil e é também mais difícil de defender perante a população em geral, porque arriscamo-nos a ter um cidadão a dizer ‘Ah, tenho de me meter na droga para arranjar emprego’. E é importante que não aumentemos o ostracismo desta população por via de medidas que possam ser sentidas como injustas pela população em geral.”
O desinvestimento político
Muito para além do contexto de crise, a socióloga Susana Henriques, investigadora do Centro de Investigação e Estudos de Sociologia do ISCTE, com trabalhos na área da sociologia dos consumos e das drogas, aponta “o desinvestimento político e científico na área” como principais falhas. O primeiro levou a que o Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências ficasse “reduzido e limitado na sua acção”, sobretudo desde que em 2011 o Instituto da Droga e da Toxicodependência deu lugar ao SICAD e a operacionalização das políticas passou para as administrações regionais de Saúde. O segundo levou a uma “substancial redução do investimento na investigação sobre as substâncias psicoactivas”. E com isso comprometeu-se, segundo a investigadora, a capacidade de “desenhar estratégias de prevenção adequadas e potencialmente mais eficazes”.
Mais duro nas críticas, o psiquiatra Luís Patrício, um dos fundadores e o primeiro director do Centro das Taipas, pioneiro no tratamento da toxicodependência, salienta o desinvestimento na redução de danos e o “frágil e insuficiente” envolvimento das estruturas locais de saúde. “Não temos máquinas para troca de seringas/agulhas 24 horas por dia em locais onde fazem falta. Não temos programa de troca de seringas nas prisões nem tratamento com opióides para todos os que têm necessidade”, exemplifica.