As escolhas da comissária Marta Soares
Pedimos a Marta Soares, uma das comissárias desta exposição que evoca outra exposição, que escolhesse algumas obras que exigem uma paragem mais demorada e que falasse sobre elas.
Máscara de Aço, c.1916
“Esta é a primeira obra da nossa exposição, e também da original e do catálogo 12 Reproductions, que Amadeo publica pouco antes da inauguração em 1916. Este tema do leitor, que é recorrente na história da pintura, praticamente não existe na obra de Amadeo e é por isso curioso que tenha escolhido esta obra para o começo de uma exposição que tem como epígrafe uma montagem de versos de Rimbaud [entre os versos do poeta francês cujo fascínio partilha com outros artistas, como o casal Delaunay, está este ‘Je ne suis pas prisonnier de ma raison’]. Livros e arte porque a poesia atrai-o, influencia-o, e isso é interessante, tal como este verde que vem do fundo e invade os óculos e a camisa. Esta figura muito estática, angulosa e tensa, como tantas outras de Amadeo, não chega a estar camuflada, mas é impossível não pensar que há aqui um fenómeno qualquer de transferência sobre o qual vale a pena pensar.”
A Vida dos Instrumentos, c. 1916
“Os instrumentos em Amadeo estão quase sempre cheios de vida, são solares. A excepção a esta regra é, curiosamente, quando estão na mão de músicos. Esta pintura é um dos melhores exemplos da abertura da sua obra a múltiplas interpretações. Onde eu vejo um olho [Marta Soares aponta para um quadrado com um círculo ao centro, no canto superior da composição], a jornalista Maria Arade, que na época faz uma das críticas mais interessantes à exposição, vê uma máquina fotográfica. Se pensarmos bem, é outra forma de ver um olho, mas é um objecto que fala muito à modernidade, à mecanização do acto de ver.”
Música Surda, c. 1914-15
“Nesta obra o contra-senso do título é sublinhado pela imagem de um músico de corpo grotesco, segurando um violino ou uma viola que não tem cordas nem arco. A sua cabeça lembra as das galerias dos loucos que provavelmente terão chocado boa parte dos visitantes de há 100 anos. Tudo na sua pose cancela ou proíbe qualquer interpretação musical. Aos músicos de Amadeo parece sempre faltar-lhes a vida que sobra aos instrumentos. Será que ele está nestas obras a reflectir sobre a dificuldade de representar em pintura uma arte que é sonora?”
Parto da Viola, c. 1916, e Mucha, c. 1915-16
“Faz sentido relacionar estas duas pinturas, embora elas apareçam em salas diferentes da exposição, porque Mucha parece ser uma espécie de zoom sobre o olho do instrumento no Parto da Viola, uma obra muito mais complexa que vai buscar elementos a outras pinturas, como a boneca saída da [série] Canção Popular ou o morango vanguardista. Juntando estas duas pinturas é fácil acreditar, como ele próprio diz, que Amadeo trabalhava em várias obras ao mesmo tempo, fazendo com que elas comunicassem, de alguma forma, naturalmente. O Mucha é também muito interessante porque nele se vê que, embora aberto a influências, ele é um homem que não segue ninguém – aqui transforma os círculos dos Delaunay [Sonia e Robert, o casal de artistas de quem era amigo, assim como Eduardo Viana e Almada Negreiros] em alvos, torna-os uma coisa sua.”