Dez paragens na linha Estoril & Lisboa
"Montra” das estreias dos próximos meses, o Lisbon & Estoril Film Festival, que inaugura sexta-feira, faz-se este ano à sombra de uma integral da obra de Jean-Luc Godard. Escolhemos dez títulos que merecem a deslocação.
O Lisbon & Estoril Film Festival (Leffest) faz dez anos em 2016. Dez anos em que a ideia original de um festival “à beira-mar” se tem vindo lentamente a desviar para Lisboa como “centro nevrálgico”, com o evento criado e mantido por Paulo Branco a expandir-se para o teatro, recitais de música ou exposições. Mas continua a ser o cinema a estar no centro, com o Leffest a funcionar como “montra” das estreias dos próximos meses. Começa esta sexta-feira e, entre dez dias de cinema à sombra de uma integral da obra de Jean-Luc Godard, escolhemos dez títulos que merecem a deslocação.
American Honey
Andrea Arnold
Competição
Cinema Medeia Monumental Sala 4, sábado 5, 18h45
Casino Estoril, sábado 5, 21h00
Andrea Arnold, britânica, descobriu a América em viagem, depois de uma reportagem do New York Times sobre a underclass americana. Esteve mais perto, para além do que os filmes mostram, do estado do sonho americano. Com Shia LaBeouf e um grupo de não-actores como intérpretes, Andrea estabeleceu o seu pacto com personagens de ferozes perseguidores do dinheiro: miúdos que atravessam o território em carrinha para venderem de porta a porta o que quer que seja. É nessa carrinha, como uma tribo no seu habitat, que o filme carrega as energias que lhe permitem fazer fogo-de-artifício e ter o mesmo ardor com a surdina do quotidiano. Harmony Korine, Larry Clark, Terrence Mallick... sim, já os estamos a ver a serem nomeados e identificados como referências... Mas American Honey, que aqui se mostra em antestreia, é a ardente inscrição de uma cineasta britânica num vasto património lírico e mitológico forjado a partir de um território implacável cuja descoberta a tocou física e psicologicamente, como ela assumiu quando o filme foi exibido em Cannes. É como se fosse um western. Vasco Câmara
Elle
Paul Verhoeven
Competição
Casino Estoril, sábado 5, 15h30
Cinema Medeia Monumental Sala 4, sábado 5, às 22h00
Paul Verhoeven “isabelle-huppertando”. Depois da sua metamorfose como cineasta americano, o holandês mostra-se como cineasta francês, reinventando-se, em sintonia com o momento de reavaliação da sua obra, com um filme de acção contemplativo: Elle – em que Isabelle Huppert, a sua distância, a capacidade para ser actriz e espectadora de si própria, o ajuda a elevar a um cume extático uma linhagem feminina que teve já os rostos e acções de Renée Soutendijk, Sharon Stone, Elizabeth Berkley ou Carice van Houten. Michelle (Huppert) é violada por um mascarado. Vê-lhe o pénis. Arma-se com machados para se defender, mas recusa apresentar queixa à polícia. Continua em frente, com os amantes, mesmo que sejam maridos de amigas, ou fazendo a sua investigação privada, obrigando os homens a baixar as calças para verificar a prova do delito – não há nada no sentimento de vergonha que seja suficientemente forte para abrandar as pulsões, diz ela. Retrato de mulher, e retrato de grupo, dos homens que rodeiam Michelle, é um filme hipnótico. Com a sua protagonista abeira-se com infinita curiosidade, e lucidez, do Mal. Para o poder compreender, para o poder habitar – para o humanizar, finalmente. Um dos filmes do ano, a antestreia ocorre duas semanas antes do lançamento em sala. V.C.
El Futuro Perfecto
Nele Wohlatz
Competição
Cinema Medeia Monumental 1, domingo 6, 17h00
Casino Estoril, segunda-feira 7, 15h30
Ambas as sessões com a presença da realizadora
Basta pouco mais de uma hora para Nele Wohlatz literalmente nos encantar: a primeira longa-metragem a solo desta alemã radicada na Argentina, premiada em Locarno com o galardão de Melhor Primeira Obra, reflecte a sua posição de “estranha numa terra estranha” através da história de Xiaobin, uma jovem chinesa que vai ter com a família a Buenos Aires sem falar uma palavra de castelhano. À medida que Xiaobin vai aprendendo a língua e aprendendo a interagir com o novo mundo que a rodeia, Wohlatz conjuga elegantemente as lições de vida e as lições de línguas, porque viver é comunicar e o nosso pensamento é moldado pelo modo como comunicamos com quem nos rodeia. Mantendo constantemente fluida a barreira entre a ficção e o documentário, El Futuro Perfecto é uma miniatura tão delicada como prosaica. J.M.
Os Belos Dias de Aranjuez
Wim Wenders
Fora de competição
Cinema Medeia Monumental Sala 4, domingo 6, 19h15
Conversa com Sophie Semin e Reda Kateb
Lou Reed canta Perfect Day: “Oh, it’s such a perfect day/I’m glad I spent it with you/ Oh, such a perfect day/ You just keep me hanging on/ You just keep me hanging on.” Um homem e uma mulher lançam um jogo de diálogos, colocam problemas numa colina com Paris em fundo, o amor e o sexo, eles contra elas e vice-versa, um ajuste de contas. O reencontro entre Wim Wenders e Peter Handke – quase três décadas depois de As Asas do Desejo, e mais de quatro décadas depois de A Angústia do Guarda-Redes no Momento do Penalty – faz-se em 3D. Espectáculo nada novo rico – as propriedades tridimensionais do texto de Handke são potenciadas –, tudo puro assombro. Wenders persegue há anos um lugar que, na profusão de imagens e de sons, seja a reserva moral do cinema – onde ele pode resistir com as suas histórias. Falou sobre isso com os filmes, falhou muitas vezes esse lugar com os filmes. Em Os Belos Dias de Aranjuez não fala, apesar de ser um filme falado. Experimenta o lugar. Faz-nos entrar nele, o espectáculo é vibrante, sensual. V.C.
Bangkok Nites
Katsuya Tomita
Competição
Casino Estoril, domingo 6, 21h00
Cinema Medeia Monumental Sala 1, segunda-feira 7, 18h
Ambas as sessões com a presença do realizador
Bangkok Nites dura três horas, mas são três das mais sedutoras horas de cinema que se podem ver este ano, e o leitor pode acreditar quando lhe dizemos que essas três horas são essenciais para perceber o que o japonês Katsuya Tomita foi fazer à Tailândia. Cruzando os destinos da call girl n.º1 da Thaniya Road de Banguecoque e de um emigrante japonês que sobrevive como pode (interpretado pelo próprio realizador), Bangkok Nites torna-se uma meditação soderberghiana sobre a transacção como modo de vida no submundo nocturno e o dinheiro como senhor do mundo. É uma versão neon do velho film noir sobre gente perdida em busca de redenção, cujo cansaço esconde uma réstea de esperança. Saiu de Locarno de mãos vazias, mas merece todos os prémios que se lhe quiser dar. Jorge Mourinha
Nocturama
Bertrand Bonello
Competição
Cinema Monumental sala 1, segunda-feira 7, 22h
Casino Estoril, terça-feira 8, 18h
Ambas as sessões com a presença do realizador
Foi um dos pequenos “escândalos” da cinefilia francesa de 2016 – o novo filme de Bertrand Bonello, crónica de uma juventude desafectada convertida em destruidora do modo de vida ocidental (o “centro” do filme é um ataque terrorista em Paris após o qual os seus perpetradores se refugiam num grande armazém), ficou de fora da selecção de todos os festivais de primeira categoria. Talvez porque Bonello já é um cineasta “estabelecido” que não precisa do apoio, talvez pelas questões morais que Nocturama levanta? O veterano crítico francês Jean-Michel Frodon viu precisamente nessa ambiguidade o cerne do que chamou “ópera trágica”, “filme magnífico e problemático”. É um dos filmes que mais têm dado que falar no meio cinéfilo dos últimos meses, Paulo Branco já assegurou a sua distribuição entre nós. J.M.
Homenzinhos
Ira Sachs
Competição
Casino Estoril, quinta-feira 10, 21h
Cinema Medeia Monumental sala 1, sábado 12, 19h30
Depois do sublime Love Is Strange, o americano Ira Sachs prossegue o seu interesse pelas “pequenas histórias” que revelam não só a grande cidade, como também as tensões que percorrem toda uma sociedade. Homenzinhos, que chegará às salas portuguesas em Janeiro pela Alambique, é um filme “de família” e “para a família”, colocando em confronto um casal que tem de lidar com a inquilina “herdada” no prédio que recebeu em herança e para onde se mudou (ecos da crise do mercado habitacional nova-iorquino que já propulsionava Love Is Strange). Mas o filho introvertido do casal trava-se de amizade com o filho da inquilina, o que complica significativamente a situação – e como Sachs se recusa a “diabolizar” as suas personagens, Homenzinhos volta à devastadora dimensão dramática das pequenas coisas. J.M.
Christine
Antonio Campos
Competição
Cinema Medeia Monumental Sala 1, sexta-feira 11, 21h45,
Casino Estoril, sábado 12, 15h30
O terceiro filme é o “momento decisivo” para António Campos, depois da surpresa de Afterschool e da decepção de Simon Killer. Com Christine, o realizador volta a escavar o lado negro da psique americana, atirando-se à história verídica de Christine Chubbuck, a pivot americana que se suicidou em directo na televisão em 1974 – o mesmo tema que inspirou a Robert Greene Kate Plays Christine (exibido no IndieLisboa), aqui tratado de modo mais tradicionalmente narrativo e dramático. Se as opiniões sobre Christine têm divergido – e o irmão da jornalista já denunciou o filme sem sequer o ver –, os observadores são unânimes em considerar Christine o “papel da vida” da actriz britânica Rebecca Hall (a Vicky de Vicky Cristina Barcelona de Woody Allen). Quando recebeu o guião, começou por “ter medo” antes de se entregar a fundo a um papel que, quase um ano depois do término das filmagens, ainda a perturba. J. M.
On the Milky Road
Emir Kusturica
Cinema Medeia Monumental Sala 4, sábado 12, às 21h45
Retrospectiva
Ainda nos lembramos de Emir Kusturica? A retrospectiva integral que o festival promove pode voltar a dizer-nos quem ele é. E que se este cinema talvez já não exista, se já não se fazem filmes assim, é vital lembrarmo-nos dele. On the Milky Road, o “regresso”, nove anos depois da longa Promise Me This, é apresentado em antestreia. Um leiteiro, e músico (o próprio Emir), atravessa a guerra dos Balcãs como um dissidente dos jogos da História. Vai encontrar A Noiva, uma italiana que foi amada por um general sérvio (Monica Bellucci), conhecendo-se ao ritmo da música de casamentos e funerais – e começam a abrir as portas emocionais que tinham fechado dentro de si próprios. On the Milky Road é a lindíssima possibilidade de reinvenção do cineasta (mesmo que nada disto possa ter continuidade), quando, na espantosa última hora, e depois dos malabarismos em que Emir se mostra como director de zoo, dirigindo gansos e moscas, aprende a respirar debaixo de água com o maduro casal, baixa a música para casamentos e funerais, deixa o vento tomar conta da guerra e do filme. Temos de experimentar esta acalmia. V.C.
Ma Loute
Bruno Dumont
Casino Estoril, domingo 13, 21h00
Espaço Nimas, domingo 13, 21h30
Fora de competição
Norte de França, início do século: de um lado, os Van Peteghem (os comediantes Fabrice Luchini, Juliette Binoche, Valeria Bruni-Tedeschi), uma família burguesa com os seus segredos de incesto e a sua impotência. Do outro, os Brufort (bloco rugoso, teimoso, de actores não-profissionais), uma família de pescadores antropófagos. Há uma história de amor que os poderia unir, mas são os pobres que vão comer os ricos, obviamente. E uma tradição do actor francês de prestígio dispõe-se a ser canibalizada pelos “amadores”. O maior canibal é Bruno Dumont, que devora René Clair, Vigo, Tati ou Pierre Étaix, uma via burlesca, herdeira do magnífico O Pequeno Quinquin, esse maravilhoso objecto televisivo que em 2014 foi visto na Arte por 1,5 milhões de espectadores, com o qual Dumont reforçou a sua metafísica: mergulhando no coração do Mal, dizendo alguma coisa sobre quem somos. V.C.