Os livros do nómada seu amigo

Uma edição que é já uma referência reúne um corpus fundamental para entender a poesia do século XX português. Um livro que resulta do trabalho minucioso de um apuro exemplar, perfeccionista, porque respeitador da arte de Ruy Cinatti.

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O primeiro volume da Obra Poética de Ruy Cinatti reúne toda a poesia publicada em vida do autor, “em livro ou folheto”

O primeiro volume da Obra Poética de Ruy Cinatti reúne toda a poesia publicada em vida do autor, “em livro ou folheto” (p. 1361), como esclarece Luis Manuel Gaspar, a abrir a secção de Notas e Variantes que conclui este volume monumental com 1400 páginas. Seguir-se-ão, além dos importantes livros póstumos, preparados e apresentados por Peter Stilwell, “os livros que Cinatti deixou prontos para edição” (uma “lista provisória” de Peter Stilwell dava conta de nove títulos nessas condições), bem como “poemas dispersos por periódicos ou distribuídos em folhas volantes pelo autor” (id.) (Luis Manuel Gaspar).

Esgotada há longos anos a anterior reunião da poesia de Cinatti (organizada por Fernando Pinto Amaral para a Imprensa Nacional-Casa da Moeda em 1992), a presente adquire um estatuto duplamente válido. Suprindo uma lacuna editorial incompreensível, restaura a presença efectiva de um poeta de uma dimensão em contraste radical com uma ausência nos escaparates que talvez tenha um sinistro paralelo na consideração crítica (e outra?) dedicada ao autor de O Livro do Nómada Meu Amigo. Conforme nos referiu a professora e ensaísta Joana Matos Frias, estudiosa da obra de Cinatti e autora do importante prefácio desta edição, “o fenómeno é tanto mais estranho quanto havia já uma reunião dos livros publicados em vida pelo autor, levada a cabo em 1992 por Fernando Pinto do Amaral e também indisponível”. “Eu própria, que fiz tese de doutoramento sobre o Cinatti, entre 2001 e 2006, tive de trabalhar com um exemplar emprestado pelo meu orientador, Luís Adriano Carlos, e só muito circunstancialmente consegui ir adquirindo alguns volumes autónomos das primeiras edições de cada livro, graças ao catálogo de alguns alfarrabistas portugueses.” Uma situação que o lançamento de Obra Poética vem claramente inverter. Joana Matos Frias não hesitará em reconhecer neste volume “um dos mais importantes acontecimentos editoriais dos últimos anos para os leitores da poesia contemporânea e para o conhecimento integral da cultura e da literatura portuguesas”. Acresce que a edição acarretou um moroso e esmerado labor de confronto de variantes, eliminação de gralhas, imprecisões, ou mesmo de disposições erróneas das matérias (estrofes, versos, poemas, inclusive) dentro de títulos autónomos de Ruy Cinatti.

Tomando como simples exemplo Nós não Somos deste Mundo (1941), Luis Manuel Gaspar relata-nos o trilho espinhoso que subjaz a um trabalho com estas características. No caso deste livro de Cinatti, desde a sua segunda edição (1960), começam os deslizes, as hesitações e afastamentos em relação ao original e às instruções de Cinatti: “Isto”, aponta Luis Manuel Gaspar num ecrã que reproduz a edição, “é a dedicatória geral do livro e, depois, há aqui uma cortina que despareceu. O poema em prosa que abre Nós não Somos deste Mundo tem um título que é o título do livro.” Algo que desapareceu em edições posteriores, incluindo a importante antologia de Alberto de Lacerda, Poemas Escolhidos (1951), que introduz nova variante, mas que, como adverte Gaspar, “também é um erro, porque pôs, de facto, o título, mas não com cortina, e a dedicatória está dentro do texto”. Um exemplo, tão-só, do género de dificuldades e variáveis que o organizador teve de levar em linha de conta, na preparação, revisão e edição deste colossal volume poético. Conversa de Rotina (1973), por seu turno, congrega outro tipo de problemas, como sejam os das dedicatórias. “Se as dedicatórias fossem todas como nos primeiros livros, simples gestos de amizade... Mas, nestes [títulos da década de 70], as dedicatórias fazem parte do poema.” Gaspar referia-se à questão vexada da eliminação das dedicatórias, que Cinatti prescreveu, e Joaquim Manuel Magalhães seguiu na sua fundamental antologia: Ruy Cinatti — Antologia Poética (1986), quase integralmente, ressalvando o que havia que ressalvar — “Apesar de tudo mantive dois dos envios” —, mas que nem sempre se pode acatar acriticamente.

Um poeta e uma obra de excepção

Obra Poética I revela um poeta dos mais singulares de um século que, não sem propriedade, já foi chamado “de ouro”. Manuel de Freitas asseverava, em 75 Poemas (Averno, 2014), antologia dedicada a Cinatti por si organizada: “Continuo a não ser capaz de lhe atribuir uma genealogia ou um perfil facilmente identificáveis (o que está longe, aliás, de constituir para mim um transtorno, sendo antes um fascínio).” Essa impossibilidade de enquadramento, de encaixe, é um dos aspectos mais importantes a ter em conta em qualquer tentativa de entender a poesia de Ruy Cinatti. Para o autor, a escrita poética é, claramente, um ofício de si consigo. Nas palavras do mesmo Manuel de Freitas: “Não creio que este despojamento lírico tenha qualquer tipo de paralelo (excepto, aqui e ali, na obra de Raul de Carvalho ou em certos poemas de Jorge de Sena) nas décadas em que Ruy Cinatti foi afirmando discretamente a sua voz.”

A expressão poética de Cinatti reavaliou idiossincraticamente as potencialidades da língua portuguesa, da sua prosódia, da policromia da sua música, para a usar de forma altamente individual, com marcas de uma autoria forte. O seu correligionário Jorge de Sena (que, com probidade, hesitou antes de criticar o poeta amigo) pôs em evidência as qualidades específicas do seu “verso, cuja expressão é elíptica, transposta e descontínua, sem precedentes ilustres na poesia portuguesa, desde se não apreciem alguns cantares de amigo, Sá de Miranda, certo Bernardim, muito século XVII e um Casais Monteiro” (Estudos de Literatura Portuguesa — II, Edições 70, 1988, originalmente na revista Árvore). Não foi em vão, como não podia ser, que o grande poeta e ensaísta frisou tais aspectos da poesia de Cinatti, que descreveu ainda como “indirecta, alusiva, fugidia, cismadora, melancólica, erradia” (idem).

Surgida no rescaldo do presencismo, a poesia de Cinatti, como a de Jorge de Sena, Tomaz Kim, ou José Blanc de Portugal, reagia, mesmo quando o fazia de modo sub-reptício, contra o “documento humano” do chamado “segundo modernismo”, o seu “pessoalismo” subjectivista e veladamente (ou muito assumidamente) sentimental — do mesmo passo que surgia refractária à displicência formal e outra do neo-realismo. Parece hoje matéria inquestionável a filiação de Cinatti em certos caracteres da tradição literária inglesa — “foram Jorge de Sena e Joaquim Manuel Magalhães os que, com maior argúcia, sublinharam atempadamente a preponderância do magistério britânico na especificidade atípica do discurso poético de Cinatti”, escreve Joana Matos Frias no seu prefácio (p. 16). Uma das mais antigas evidências, e de efeitos mais notáveis, de um percurso tão pessoal como o de Cinatti consubstanciou-se nos Cadernos de Poesia. Joana Matos Frias, que assinou, juntamente com Luís Adriano Carlos, uma edição moderna (Campo das Letras, 2005) daquela revista, frisa, na entrevista que nos concedeu, o “modo como os poetas neles envolvidos procuraram promover um entendimento harmonizador da actividade poética, numa época, como o início dos anos 40, em que o ambiente de guerra se estendera ao campo literário português, que assistia às agressivas discussões entre presencistas e neo-realistas”. Um projecto que, como nos explica, rapidamente passou a ter como principal animador Jorge de Sena, visto que “o próprio Ruy Cinatti desenvolveria um projecto paralelo, a revista Aventura, de que era — aí sim — o único editor e que em larga medida pareceu ser o lugar onde realizou de facto aquilo que aparentemente não encontrava nos próprios Cadernos”.

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A impossibilidade de enquadramento, de encaixe, é um dos aspectos mais importantes a ter em conta em qualquer tentativa de entender a poesia de Cinatti — o seu despojamento lírico não tinha paralelo nas décadas em que foi afirmando discretamente a sua voz A IMAGEM PERTENCE AO ESPÓLIO DE RUY CINATTI, NA BIBLIOTECA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA PORTUGUESA
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A IMAGEM PERTENCE AO ESPÓLIO DE RUY CINATTI, NA BIBLIOTECA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA PORTUGUESA

A peculiar dicção poética de Cinatti — para a qual, como nos disse Joana Matos Frias, “é muito marcante” “o facto de ele ser um homem das ciências” — assume facetas nem sempre comuns na paisagem da poesia portuguesa do seu tempo, e mesmo de épocas posteriores: a introdução de notações manifestamente informativas, quase documentais. Mas também a sua conjugação com factores pouco previstos, que humanizam esses dados, ou os tornam inconclusos, problemáticos, mais poéticos do que dogmáticos. Não é preciso sequer que se explicite aquele pressuposto de teor biográfico — “O ar respiram-no todos:/plantas, animais e homens/ que no fogo forjam armas/ e com elas ferem lume” (p. 1160, de Lembranças para S. Tomé e Príncipe) —, porque, mesmo quando tal não sucede, existe um apego ao mundo — “Nós não somos deste mundo, mas é no mundo que eu vivo”, escreveu Cinatti no poema em prosa que antecede Nós não Somos deste Mundo — que não é do misantropo, nem do idólatra, mas que orbita em torno do conhecimento de cariz científico para chegar ao radical (des)conhecimento que é a poesia (Como escreveu António Barahona: “Cinatti expressa o mistério do texto com claridade: o não-entendimento do mistério não é obscuro”, Cão Celeste, n.º 7, 2015) — “As mãos lindas que vi deixam-me absorto:/ compridos dedos, polegares de espátula,/ um dedilhar de flores em jardins ociosos,/ só comparável a conversa amena/ de duas mulheres simples debruçadas/ sobre o tampo liso de uma mesa” (p. 1225, de 56 Poemas). Num poema como o citado, cujo título, nada indiferente, é Momento num café, são a geografia humana e a física que se encontram numa espécie de “geografia sentimental” que, sem confundir aqueles elementos, os congrega. A “espátula” dos dedos descritos (de mãos, antes disso, vistas) introduz a noção de certa geometria e frieza que logo se dispersa e perde rigidez, tocada pela topografia combinatória de um “dedilhar” que se torna formação vegetal. Mas Cinatti consegue, ainda assim, inflectir e fixar, por momentos, a sua atenção noutras modulações, com as quais há quase um render da guarda em que a lírica cede lugar à sátira — “Há a minha Faculdade/ — assunto dos meus amores —/ da Agronomia e da Árvore” (p. 834, de Os Poemas do Itinerário Angolano).

No seu exemplar prefácio, Joana Matos Frias lista alguns aspectos que poderão ter moldado algum dos seu infortúnio crítico, como sejam a “marginalidade radical” (p. 10) de Cinatti, a sua “quase total distanciação de qualquer poética do fingimento e um progressivo equacionamento da poesia como espaço de autenticidade e de intervenção ético-política, com implicações desconfortáveis para determinados leitores muito ciosos da inutilidade da (sua) arte” (id.) e, não menos importantemente, “um entendimento irreverente e pouco ortodoxo da manifestação literária do catolicismo, mais humano e terreno do que divino e celestial” (id.). Manuel de Freitas descrevera já um “poeta que não poucas vezes ‘discutiu’ com Deus, usando para com Ele da mesma sóbria e vertical reverência que lhe terão merecido os chulos e as prostitutas do Cais do Sodré”. Desse modo, a acção de Ruy Cinatti teria sido duplamente contrária a integrações fáceis ou apaziguadoras. Pela vertente mais especificamente literária, o poeta praticou uma arte que se erguia, não pelo ardil de uma seriedade pífia ou hipócrita, mas pela franqueza de uma dimensão integralmente humana, em confronto com o transcendente de feição católica. Na sua relação com o divino, não usou de paramentos, nem disfarçou a sua humanidade, antes procurou entendê-la, à medida que percebia que distância e proximidade de Deus eram como faces de um mesmo astro. É o próprio Peter Stilwell quem nos fornece a analogia, quando nos confia: “Um aspecto me marcou particularmente: a ideia de que na raiz dos mitos e ritos desses povos [de Timor], e das forças espirituais em que acreditam, reside a crença num monoteísmo profundo; e, à luz desse monoteísmo, o mal e o diabo não podem ser entendidos como princípios autónomos, contrapostos ao divino, mas antes como ‘a face obscura de Deus’ (um pouco à semelhança do lado obscuro da Lua). Ao lembrar agora essas conversas, há muito por mim esquecidas, dou-me conta que talvez permitam uma hermenêutica do diabo e da violência em Manhã Imensa — redigida por Cinatti entre 1965-66 — e, porque não, uma contestação profética do dualismo que ameaça hoje a cultura e a religião.”

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Um itinerário timorense

Talvez a religiosidade deste poeta, que António Barahona descreve como “sóbrio e religioso”, não ande muito longe da complexa relação com o divino de um Régio (entre outros, o das Confissões de Um Homem Religioso). “Sou católico e militante”, afirmava em entrevista a Joaquim Furtado citada por Joana Matos Frias. “Sou um homem de comunhão. Sou muito heterodoxo. Sou um católico poeta. Não sou um poeta católico. A minha poesia não obedece a temas especificamente católicos.” (p. 23) O que lembra uma distinção, feita vários anos antes por Sena, no artigo já citado: “Cinatti não é um poeta católico, mas um católico que escreve poemas.” Na antologia atrás mencionada, Manuel de Freitas falava mesmo de um “misticismo terreno”.

Embora não condicionem a sua poesia — “Condição de liberdade, a poesia” (p. 350), escreveu Cinatti no “Comentário Disponível que encerra Sete Septetos —, estes aspectos introduzem, naturalmente, as suas marcas na obra poética do autor. Num poema chamado O fenómeno humano, por exemplo, escreveu Ruy Cinatti: “Não sei quem me criou. Deus sobre todos

Paira. Esta canção pertence-lhe:/ O pão de cada dia nos dai hoje./ Não sei quem me criou. O ar que respiro/ Não me deixa ser menos do que sou.// Não me deixa o mar omnipotente,/ A terra inteira erguida ao céu profundo./ Cada passo da História me é presente./ Sou o compasso do mundo.” (p. 268, de O Livro do Nómada Meu Amigo) Nele, através de cirúrgicas manobras da prosódia e da gramática da frase, o poema encontra a sua forma de unificar antinomias, ainda que retenha o que há de próprio a cada esfera. Os versos, no seu funcionamento rítmico e gramatical, geram sentidos de aparente ambiguidade — o núcleo Deus sobre todos, quebrado pelo fim do verso, quase perde o fulgor, que se reafirma, mas modalizado pela forma verbal “paira”—, que introduzem a fraseologia religiosa num plano situado entre o profano e o litúrgico: “O pão de cada dia nos dai hoje.” Mas, até porque a condição humana nunca é subsidiária, pelo contrário (o magno estudo de Peter Stilwell, dedicado ao poeta, único, na sua abrangência, chama-se, precisamente, A Condição Humana em Ruy Cinatti), a poesia de Cinatti forma vaivéns de uma intensidade inquietante entre crença e dúvida. E é por vezes imprevisível a energia de uma auto-análise impiedosa do demasiado humano de si próprio — “Homem finito, que pretendes tu/ nestes cinquenta anos/ de malícia eterna?/ Coveiro de ti mesmo. Engenheiro/ de profissão; nas horas vagas/ o que faz conchas e fabrica neve/ com o suor do rosto./ E jardineiro,/ pra quem não faz nada./ Um, dois, dois, um, três, quatro./ Signo matemático:/ zero, zero, zero./ Mas há um abismo que se determina/ cerce: não adies a morte.” (p. 347, de Sete Septetos) Elementos como “finito”, “engenheiro”, ou mesmo “zero” revelam uma natureza dolorosamente concreta, temporal — reafirmada na indicação da idade do sujeito/objecto poético —, que contrasta com tantos dos mergulhos no infinito e em Deus intentados por esta poesia.

É conhecida a relação que unia Cinatti e Timor numa comunhão de raízes profundas. Desde que, em 1946, viajou para aquele território, para desempenhar funções de secretário do governador (mais tarde, seria chefe dos Serviços de Agricultura do Governo), nunca mais abandonará esta segunda (primeira?) pátria, mesmo durante longas ausências. “Os melhores anos da minha vida passei-os em Timor e dei-os a Timor”, disse Cinatti em entrevista já mencionada, citada por Joana Matos Frias. “Fiz juramento de sangue com dois chefes timorenses, eles beberam o meu sangue e eu bebi o deles.” E, conforme nos confiou Peter Stilwell, “os pactos de sangue que celebrou com dois liurais são, provavelmente, a chave para entender como um poeta, silvicultor, antropólogo português, membro da administração colonial nos anos 50, é hoje recordado como membro de um povo que outrora serviu e amou”. “Em cada viagem a Timor, encontrei-me com Cornélio Ximenes, filho do liurai de Loré, D. Adelino Ximenes, com quem o poeta celebrou um desses pactos, e é patente o orgulho com que afirma a sua relação de sangue com Cinatti. Numa das ocasiões, trouxe consigo o irmão a quem o pai pôs o nome Ruy Cinatti em homenagem ao pacto. Nasceu assim uma linhagem Cinatti em Timor.”

De resto, a relação de Cinatti com Timor foi-se cimentando, mesmo na vertente académica do seu percurso, pois a tese por si apresentada no Instituto Superior de Agronomia intitulava-se Reconhecimento em Timor. A geografia timorense passará também a ocupar lugar de realce na sua obra poética: Um Cancioneiro para Timor (escrito em 1968, apenas seria publicada em 1997), Uma Sequência Timorense (1970), Paisagens Timorenses com Vultos (1974) Timor-Amor (1974).

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