Ministério autoriza alunos a escrever e pintar nos manuais gratuitos

Governo assume que manuais grátis não serão, na maioria, reutilizados. Crianças podem riscar, pintar e colar autocolantes. Ministério quer novos livros feitos para mudarem de mãos.

Os manuais do 1.º ciclo estão concebidos como livros de exercícios
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Os manuais do 1.º ciclo estão concebidos como livros de exercícios Rui Gaudencio
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RG RUI GAUDENCIO

Os manuais escolares do seu filho começam a estar escritos à mão? E têm desenhos pintados ou gravuras coladas? Não se preocupe que não será por isso que, no final do ano lectivo, terá de pagar pelos manuais do 1.º ano que este ano foram distribuídos gratuitamente. Esta é a indicação que o Ministério da Educação (ME) já deu às escolas, segundo uma nota da Direcção-Geral dos Estabelecimentos Escolares a que o PÚBLICO teve acesso.  

Resta saber como poderão os livros ser reutilizados nestas condições, o que também faz parte das intenções do Governo. Pais e professores ouvidos pelo PÚBLICO são unânimes na resposta: tal não vai ser possível. E não só com os manuais do 1.º ano, mas igualmente com todos os outros anos do 1.º ciclo que, segundo a proposta de Orçamento do Estado para 2017, serão gratuitos já no próximo ano lectivo.

Em resposta ao PÚBLICO, o gabinete de comunicação do ME lembra que o ministério “já referiu que não espera, neste primeiro ano, uma taxa de reutilização muito significativa”. “O que está em causa é a promoção de uma cultura de responsabilização relativamente ao manual”, explica. Mas o ME refere também que está, neste momento, a avaliar a concepção dos manuais do 1.º ciclo. Razão: “Tal como está previsto na lei desde 2006, todos os manuais têm de ser passíveis de reutilização e terão de ser concebidos com esse pressuposto, não podendo os manuais do 1.º ciclo constituir excepção”.

Mas por agora é isso que acontece. O problema com os manuais do 1.º ciclo é que “foram certificados pelo próprio Ministério da Educação para não serem reutilizados”, frisa Henrique Cunha, fundador do movimento Reutilizar. É o que se depreende do despacho de 2014 que estabelece os critérios para a avaliação e certificação dos manuais, sendo um destes a possibilidade da sua reutilização. Para o efeito, refere-se no diploma, não devem incluir “espaços livres para a realização de actividades e de exercícios, com excepção dos manuais escolares destinados ao 1.º ciclo do ensino básico”.

É para este despacho que remete a nota da DGEstE enviada às escolas, em que se lembra que os manuais escolares do 1.º ano de escolaridade “apresentam a existência de ‘espaços livres’ destinados ao preenchimento, escrita e aposição de autocolantes e destacáveis e que devem por isso “ser utilizados normalmente e de forma plena pelos alunos”, como aconteceu nos anos anteriores, não devendo ser considerado “em mau estado um manual utilizado” nestes moldes.

A intenção de entregar os manuais escolares de forma gratuita, para cumprir o preceito constitucional da gratuitidade da escolaridade obrigatória, foi associada pelo Governo à sua reutilização futura, única forma de garantir a poupança que a prazo o executivo de António Costa espera conseguir com esta medida. Isto porque, conforme tem alegado a secretária de Estado Adjunta e da Educação, Alexandra Leitão, a despesa com a compra dos manuais só se faria sentir nos primeiros anos, sendo depois inferior à que é suportada pelo Estado no apoio aos alunos carenciados, que deixaria de existir para a aquisição de livros escolares. Em entrevista ao PÚBLICO, Alexandra Leitão revelou que aderiram à iniciativa cerca de 92% dos alunos do 1.º ano.

Joana Sobral, que tem um filho no 1.º ano de escolaridade, apercebeu-se do problema quando apareceram os primeiros trabalhos de casa. “Deparei-me com o facto de o meu filho estar nas aulas a preencher o manual, e que os trabalhos de casa são para ser feitos no manual”, descreve. Como para receber de forma gratuita os três manuais do 1.º ano (Português, Matemática e Estudo do Meio) teve de assinar uma declaração onde se comprometia a devolvê-los em bom estado, pediu esclarecimentos à escola e ficou assim a saber que os livros eram para serem usados em pleno. Conclusão: “Os manuais não vão poder ser reutilizados. Para isso acontecer têm que ser outros, em que o preenchimento é feito num caderno à parte”, refere.

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“Não é exequível que um professor peça a um aluno, mais ainda do 1.º ano, que copie para o caderno as actividades do manual”, contrapõe Célia Mestre, docente do 1.º ciclo, para explicar depois que “o aluno não o saberia fazer dada a sua pouca autonomia e capacidades de escrita”, para além de que a actividade de cópia dos exercícios dificilmente contribuiria para a sua aprendizagem.

“Os manuais no 1.º ciclo não são de consulta ou de estudo, como noutros níveis mais avançados, são livros com actividades para os alunos realizarem e por isso a sua reutilização não me parece uma medida muito coerente, nem promotora de mais sucesso”, frisa.

Alunos preocupados

Cláudia Borralho começa por rir-se quando questionada sobre o que estão a fazer para manter os manuais da filha em bom estado. Conta que a professora avisou logo no início das aulas que os livros seriam para utilizar em todas as suas componentes, incluindo pintar gravuras com lápis de cor. E que a filha ficou preocupadíssima porque logo no primeiro transporte dos livros, de escola para casa, ficaram por acidente com um rasgão nas capas. Ela plastificou-os, mas não sabe se serão aceites de volta.

Rui Candeias, professor do 1.º ciclo, conta que os professores da sua escola optaram também desde o início por utilizar os manuais em pleno, uma vez que tinham “seleccionado os livros pelas tarefas que propunham e que muitas delas implicam a realização das mesmas directamente no manual”. É o que os alunos estão a fazer, embora estejam “a ser orientados a terem o máximo cuidado no manuseamento dos manuais para que não fiquem danificados”.

“Até ao momento têm mostrado preocupação e cuidado, mas devido às características da própria concepção destes livros e dos alunos do 1.º ano, penso que dificilmente serão reutilizáveis no próximo ano lectivo”, prevê Rui Candeias, que deixa o seguinte conselho: “Penso que se deveria começar por certificar apenas manuais que respeitassem a condição de serem reutilizáveis e só depois proceder ao seu empréstimo de forma gratuita”.

Passo em falso

Dos contactos que tem tido com muitos pais a propósito da constituição de bancos de trocas de livros e em prol da gratuitidades dos manuais escolares, Henrique Cunha frisa que a grande maioria é a favor da reutilização dos manuais, mas que sabem por experiência que esta não é possível no 1.º ciclo. Por isso considera que a decisão do Governo de começar este programa pelos mais novos, em vez de, por exemplo, pelo 5.º ano, constitui “um passo em falso que poderá dar força aos seus detractores”.

“No próximo ano como se sentirá uma criança do 1.º ano, acabadinha de chegar à escola, ao receber um livro em mau estado?”, questiona Graça Margarida, membro da associação de pais do agrupamento de escolas Filipa de Lencastre, em Lisboa, e responsável pelo banco de troca de livros ali existente. Refere que neste banco não se troca livros do 1.º ciclo “porque não é possível nem justo para as crianças”. “Ocasionalmente temos pedidos, mas quando os pais vêem o estado dos livros compreendem que não é possível reciclar”, explicita. 

Para além de funcionarem como cadernos de exercícios, são livros “de capa mole, frágeis, que mal aguentam um ano lectivo”, descreve, lembrando que, pelo contrário, noutros países estão concebidos para durar (ver texto nestas páginas). Joana Quintela, mãe de sete filhos, também fala com base na sua experiência. A reutilização é uma preocupação constante desta família numerosa, mas diz que “os livros do 1.º ciclo nunca deram para passar de uns para os outros”.

Quer isto dizer que a reutilização não se deve aplicar ao 1.º ciclo de escolaridade? “A reciclagem pode e deve ser feita, mas não com os livros que temos neste momento”, resume Graça Margarido.

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