Este mundo que começa a tremer
Nestas ficções breves, a pior tempestade pode rebentar na mais despercebida paisagem física e emocional.
Em catorze contos, Teolinda Gersão cria universos agitados por uma grande variedade de elementos perturbadores. Do mais radical tumulto, como em Pranto e Riso da Noiva Assassina – com a violência e os estados extremos a derivarem, sobretudo, dos efeitos venenosos de uma psique em descalabro – ao mais trivial, numa espécie de jogo de sociedade onde tudo se emaranha como numa teima infinita, como no conto Enredos.
De resto, nenhuma das extremidades do espectro tolera uma leitura superficial. O primeiro conto do livro, Pranto e riso da noiva assassina, abre com a seguinte admissão: “O homem que eu amava deixou-me por outra e eu entrei em desespero e matei-o. Provavelmente enlouqueci.” (p.9) – possível alusão à famosa abertura herbertiana em Os Passos em Volta: “Se eu quisesse, enlouquecia. Sei uma quantidade de histórias terríveis.” Uma ambientação que, de certa forma, é retomada em As mimosas, onde o direito à companhia de uma idosa em estado de enfermidade pode ser um contratempo para a vida amorosa da filha, ou apenas a sua única realidade. Porque toda a existência paralela à doença da mãe pode mais não ser do que a projecção e o delírio de uma mente onde tudo ruiu, e apenas a fachada mal se sustém.
Mas é também em ambientes inconspícuos que surgem alguns dos mais fundamentados exemplos de radicalidade, e exemplos do acabamento formal e técnico destas narrativas. As “cinco e cinco” (p.41) que iniciam o conto O meu semelhante marcam uma cronologia viciada pela rotina do transe quotidiano. O pormenor dos minutos prende a protagonista e narradora a uma rede de obrigações enleadas num sistema de transportes públicos que sorve esta utente e a impede de dispensar um instante que seja para salvar alguém preso num elevador. Essa a génese do conto, instalada como impulsor da obsessão, que é aqui outro nome para a culpa. Toda a logorreia que se sucede, um desvelar assoberbado de obrigatórios castigos diários, mais não é do que o ruído de fundo para uma consciência atormentada. As micronarrativas de que se faz esta secção do conto agitam esse núcleo central que contrasta com o final, onde tudo é atalhado e se entrecorta. Em que todas as reacções servem para acelerar o tempo, para que tudo passe e se esqueça a vítima que ficara encerrada no ascensor ao longo de todo o conto. O meu semelhante é pontuado por flagrantes terríveis de certo enfoque ferozmente quotidiano, como a quantidade exorbitante de pacotes de leite prestes a passarem da validade, que a moradora do prédio oferece à empregada da limpeza, a reticente protagonista. A inteligência deste conto reside na sua capacidade de equilibrar o que, ao mesmo tempo, é limitado no escopo, doméstico, prosaico – um padrão que conhece paralelo no conto Enredos, certeiro retrato dos novelos irritantes da bisbilhotice, que por sua vez se aproxima de Conversa, conto de A Mulher Que Prendeu a Chuva e Outras Histórias (Sextante, 2007) – e, contudo, transcende essa circunscrição. Porque se alarga em anéis de sentido muito subtis, para incluir uma reflexão sobre a noção de remorso, o princípio da ajuda ao próximo, mas também a arbitrariedade da vida moderna e suas constrições, com uma quota-parte imponderável de perversão.
Uma tarde de Verão lida corajosamente com princípios comportamentais à margem dos convénios mais tranquilizantes. A mulher que reencontra um antigo relacionamento marcado pelo tempo e pelas desventuras é, quase no imediato, apresentado de modo exemplar – “Foi de repente que lhe ocorreu o nome dele, e o seu antigo rosto surgiu, por detrás do rosto de agora, desfigurado como se sobre ele tivesse rolado um século.” (p.59) Um reconhecimento que, desde logo, implanta no texto uma importante noção, a de máscara – sobretudo, porque esse sentido apenas se insinua, na descrição de um rosto que se sucede a outro. E o conto constituir-se-á muito sobre o padrão de contraste entre a ocultação e a revelação. Sucessivamente, vão sendo introduzidos na narrativa elementos que complicam a situação inicial, retirados tanto da falência física do homem que a protagonista defronta, como da incapacidade que ele tem de fazer jus à pujança de outrora. O desenvolvimento do conto, porém, transporta dados declaradamente díspares, que adensam o ambiente em criação. Enunciados entre parêntesis desempenham a função de emprestar espessura ao contexto formulado para a narrativa, mas, sobretudo, arrancam de um passado comum os fios que agora vão unir-se em nós derradeiros, a cortar a circulação a qualquer tentativa de reatamento verídico. É só quando a protagonista-narradora admite, para si, a vulnerabilidade suscitada pela antiga separação que tudo está preparado para se compreender o verdadeiro (?) móbil daquele prolongamento custoso, rememorando o que se estafou, esqueceu. A constatação mais importante identifica o âmago decepcionante de tudo: o ego magoado do lado masculino deste duelo pretende ser ressarcido. Perante a impossibilidade de um envolvimento físico cabal, é outro tipo de impossível que assoma: o da intimidade. Não será propriamente a piedade a mover a protagonista, mas qualquer outra espécie de resignação. O alívio da falta de obrigação confina com a anuência, mas no fundo de tudo há uma sombra que tudo nublou para sempre.
O que mais perturba em Detrás dos Sonhos é o ponto de vista. O facto de o conto ser narrado na segunda pessoa faz dele um artifício de especial agudeza e corte. Tudo teria sido mais “natural”, mas bem menos interessante, se a narração fosse feita pela mulher que sonha. Em vez disso, é o seu interlocutor quem transmite a narração da sonhadora. Não se trata, propriamente, de distorcer o testemunho em primeira mão, mas de criar um hiato onde se instalam silêncios, atrasos, diferendos. E onde se acumula o ressentimento como pó num canto pouco vigiado de uma casa. O narrador é, portanto, o homem, a quem os sonhos são contados – lidos, na verdade, o que cria mais uma barreira adicional. Este narrador na segunda pessoa, que se dirige à mulher que tivera os sonhos, torna, então, tudo mais oblíquo, sombrio e esbatido. Tudo se faz mais custoso e endurece; tudo se move com um passo hesitante, mas muito mais idiossincrático. Como em marcha lenta, sobre terreno resvaladiço.
O último conto, Alice in Thunderland é uma poderosa investida no universo de Lewis Carroll. Tal como a novela O Fotógrafo e a Rapariga, de Mário Claúdio (Dom Quixote, 2015) – ainda que, naturalmente, com cambiantes importantes –, toma a perspectiva da jovem Alice que originou a personagem de Carroll. E que viveu o cruel dilema de ser personagem da vida real depois de ter entrado no vórtice onírico do autor. É uma tomada de posição exemplar no xadrez dos géneros, apropriando-se dos códigos da (auto)biografia e tornando-os peças integrantes na mecânica da ficção breve. Esta passa a enquadrar as vertentes histórica e memorialística nas correntes de sentido que proporciona. As tensões não apenas são bem geridas – porque os dados da equação só muito gradualmente, e em parte, são introduzidos no círculo de fogo deste rememorar da dor –; mas também de uma forma especialmente admirável. A variação de ponto de vista, bem como da perspectiva cronológica e subjectiva, são acondicionadas com mestria. Este é o conto de maior ambição – e também o mais extenso. Isso permite, naturalmente, um desenvolvimento mais consumado. A narrativa de primeira pessoa cria compartimentos flutuantes entre épocas da vida da protagonista e narradora, que manuseia momentos de tensão e vai tornando o seu relato permeável a uma suspeita que se torna persistente. Como a “luz que o ilumina é sombria” (p.131), a perversidade do mundo de Carroll – e seu duplo, reverendo Dodgson – vai sendo revelada com destreza e contenção, nunca indiciando em demasia – “estava a perder a casa, o caminho de casa, senti confusamente. As coisas seguras e familiares pareciam-me agora muito longe, e lembrei-me com angústia como a gata Diná era macia” (p.122). O desfecho do conto não constitui um ajuste de contas, mas uma notável arquitectura onde os planos convergem e divergem sem um fechamento definitivo. Onde não há redenção, nem castigo. E onde, como em qualquer pesadelo digno desse nome, nunca nada realmente termina.
Prantos, Amores e Outros Desvarios percorre com destreza o espectro vasto do quotidiano. Do mais conturbado ao mais aparentemente plácido, a escrita de Teolinda Gersão capta o pulsar distinto da vida como se de um batimento comum se tratasse.