Como é que sabemos que o mundo não sai do lugar quando viramos a cabeça?
Equipa de investigadores da Fundação Champalimaud estudou o cérebro da mosca-da-fruta e percebeu que há um grupo de neurónios que usa sinais visuais e não-visuais para monitorizar os movimentos.
Quando rodamos a cabeça, o mundo também parece rodar no sentido inverso. Na verdade, apesar do que vemos, sabemos que somos nós que nos estamos a mexer e o que o mundo está quieto. O nosso cérebro sabe. Como?
Uma equipa de cientistas da Fundação Champalimaud descobriu, no cérebro da mosca-da-fruta, “um circuito neural que cria uma representação interna fiável da direcção e velocidade de locomoção do insecto” e que, para isso, recorre a sinais visuais e também não visuais. Os resultados, que podem ser úteis para os humanos, foram publicados esta segunda-feira na revista científica Nature Neuroscience.
“É difícil explicar a complexidade de coisas simples, como esta função, que tomamos por garantidas e que nem temos consciência de que acontecem”, desabafa ao PÚBLICO Eugenia Chiappe, investigadora da Fundação Champalimaud e principal autora do artigo. De facto, parece quase demasiado óbvio e simples. “Experimente girar a cabeça”, pede a investigadora. É claro que sabemos que o mundo não sai do lugar quando viramos a cabeça. O mesmo se passa quando vemos a paisagem da janela do comboio e sabemos que somos nós que estamos em movimento. Mas como é que o nosso cérebro sabe isso se vemos tudo a rodar? “São funções que calibramos quando somos muito pequenos, crianças. Por isso, não pensamos nelas”, diz Eugenia Chiappe.
A equipa fez várias experiências com a mosca-da-fruta a andar. O insecto foi colocado numa bola suspensa no ar, convidado a mover-se num cenário com luzes acesas (recebendo sinais visuais) e desafiado a fazer o mesmo às escuras. No final das experiências, os cientistas confirmaram que há um grupo especial de neurónios (que se chamam células HS, de horizontal system cells) que é excitado e activado por sinais visuais, o que já se sabia, e descobriram que também usam sinais não visuais.
“Percebemos, pela primeira vez, que estes neurónios de processamento do fluxo óptico recebem sinais não visuais relacionados com a função motora para terem informação correcta sobre o movimento de um animal no espaço, mesmo na ausência de informação visual”, referem os autores no artigo.
Este tipo de células existem “em todas as espécies do reino animal, desde os peixes aos primatas, passando pelas aves ou gatos”, nota Eugénia Chiappe. E, ao que tudo indica, no caso dos primatas, estes neurónios também recebem informação não visual relativa aos seus movimentos de locomoção.
Para perceber a contribuição de sinais não visuais para a actividade das células HS da mosca, os cientistas apagaram a luz. “O que mostrámos agora na mosca-da-fruta é que, mesmo no escuro, as células HS continuam a monitorizar os movimentos corporais através de sinais não visuais”, diz Eugenia Chiappe. “Até agora, isto não tinha sido provado”, acrescenta, no comunicado sobre o estudo.
Mais: os investigadores concluíram ainda que os dois tipos de sinais coexistem e que é graças a esta combinação de estímulos que a células HS são capazes de monitorizar e controlar o rumo da mosca e calcular a velocidade a que se move.
Quando estas funções não são executadas nos bastidores do nosso cérebro e há uma falha – causada por uma lesão de um acidente vascular cerebral, por exemplo –, percebemos a falta que fazem. “Quando não funcionam podemos ter grandes problemas de interacção no mundo. Sentimo-nos tontos, doentes e incapazes de fazer qualquer coisa, mesmo coisas simples como estar de pé ou atravessar uma sala”, confirma a investigadora.
Agora, falta identificar quais são sinais não visuais usados por este circuito neural. Eugenia Chiappe acredita que, entre outros, estará envolvido “o chamado 'sexto sentido', ou propriocepção, que nos permite conhecer, a cada instante, a posição no espaço das diversas partes do nosso corpo”. “É importante perceber como os processos motores e visuais interagem com a percepção dos nossos próprios movimentos, porque essa coordenação está na base de muitas das nossas actividades do dia-a-dia”, conclui.