Moinhos de água do Guadiana: sem protecção, só restam ruínas

Já pouco sobra da grande densidade de engenhos hidráulicos que durante séculos produziu a farinha que o país amassou para o fabrico de pão.

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Moinho do Escalda em Mértola
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Azenha do Pisão em Salvada, Beja
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Azenhas Velhas em Reguengos de Monsaraz
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Azenha da Misericórdia em Serpa
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Azenhas da Machada

Mais de duas centenas de moinhos de água, construídos entre os séculos XVII e XX, ao longo do percurso do Guadiana e nos seus afluentes e subafluentes, entre o sul da foz da ribeira do Caia e a vila de Mértola estão ao abandono. A grande concentração de um tipo de estruturas hidráulicas destinadas à moagem de cereal, que se destacam por terem sido concebidos para resistir às violentas enxurradas e à submersão por vários meses, torna este património único a nível nacional. Porém, “não está classificado”, reconhece Ana Paula Amendoeira, Directora Regional de Cultura do Alentejo.

O trabalho de inventariação realizado pela Empresa de Desenvolvimento e Infraestruturas do Alqueva (EDIA) ao longo das últimas duas décadas, agora alvo de uma exposição na sede da empresa em Beja, é a única iniciativa conhecida sobre os moinhos do Guadiana.

A um número tão elevado de engenhos — mais de 200 — “ainda é possível continuar a acrescentar novas descobertas nos afluentes do Guadiana”, assinala José Perdigão, técnico de arqueologia e que há mais de 20 anos faz o levantamento deste património moageiro para a EDIA. Recentemente, foram identificadas mais oito estruturas na confluência dos rios Terges e Cobres entre os concelhos de Beja e Mértola, outras no rio Ardila em Moura e até num dos seus afluentes, o Múrtega, que atravessa o concelho de Barrancos.

Esta tecnologia de moagem, baseada na turbina hidráulica, terá sido introduzida na Península Ibérica durante a ocupação romana, mas o seu aparecimento no Guadiana remonta, “pelo menos, ao século XIII”, refere Luís Silva no seu livro Moinhos e moleiros no Alentejo Oriental: Uma perspectiva etnográfica, dado que são objecto de menção no Convénio de Limites assinado em Badajoz em 1267 entre Afonso X de Leão e Castela e D. Dinis, futuro rei de Portugal.

No século XVII assistiu-se a um forte incremento na instalação dos moinhos. Naquela época, “houve necessidade de encontrar resposta em farinha para o fabrico de pão e de rações para animais de modo a responder às necessidades alimentares resultantes do crescimento demográfico”, realça o investigador.
A sua construção tinha uma faceta muito peculiar: Como muitos dos cursos de água da bacia do Guadiana estavam sujeitos — antes da construção de Alqueva — a bruscos e acentuados aumentos do volume e ímpeto dos seus caudais, os moinhos foram construídos de forma a suportar danos na sua estrutura arquitectónica abaulada quando a violência das águas se fazia sentir ou nos casos em que ficavam submersos, às vezes por três ou mais meses.

A solidez da sua construção impunha custos elevados que ficavam geralmente a cargo “da coroa, da grande nobreza, do alto funcionalismo régio e das ordens militares e religiosas”, observa Luís Silva. Com o desaparecimento destas entidades, os moinhos passaram a constituir propriedades privadas individuais, muitas vezes detidas por lavradores, moleiros e maquilões (indivíduos que transportavam a farinha do e para os moinhos).

Os moinhos do Guadiana não só subsistiram até muito recentemente como ainda se construíram alguns exemplares nos últimos anos do primeiro quartel do século XX. Mas os anos 30 do século passado marcaram o princípio do fim da sua laboração. Para reagir à pressão da indústria de moagem, alguns engenhos viram mecanizada a sua produção. José Perdigão recorda que um dos governos de Salazar “proibiu, nos anos 50, a produção de farinha nos moinhos do Guadiana”, avalizando, desta forma, a emergência da grande indústria moageira mecanizada.

Mesmo assim, a actividade dos moinhos do Guadiana manteve-se até à década de 60 do século XX, “altura em que laboravam mais de trinta unidades, ou seja, cerca de um terço dos moinhos edificados a sul da confluência do Caia”, refere Luís Silva. Nos anos 80, ainda laboravam cinco moinhos no Alandroal (dois), Reguengos de Monsaraz, Serpa e Mértola. A instalação de motores a gasóleo nalguns engenhos de moagem já nos anos 80 foi a derradeira tentativa para resistir à concorrência das grandes fábricas de moagem.  

Mas o tempo de vida deste artesanal modelo de moagem estava a chegar ao fim. A transformação radical no modo de vida da população e na economia do país, acentuou-se sobretudo a partir do início da década de 60, quando a perda de rentabilidade começou a afectar de modo significativo a actividade moageira. E para a maioria dos moleiros do Guadiana, deixou de fazer sentido a transmissão de conhecimentos aos filhos, tal como os tinham recebido dos seus ascendentes.  

Luís Silva associa outras causas que determinaram a desactivação dos moinhos. Entre elas inclui-se a redução substancial do pão consumido nas casas de lavoura para alimentar o pessoal de trabalho, que reduziu substancialmente com a mecanização da agricultura que sofreu um forte incremento nos anos 50, que por sua vez conduziu à dispensa dos animais de trabalho e à consequente diminuição do consumo de farinhas de rações. Decisivo, neste processo, foi também o desencadear das correntes migratórias da população rural em direcção aos centros mais industrializados de Lisboa, Setúbal e Europa, assim como “a mudança nos hábitos alimentares da população”, assinala o investigador. No início dos anos 90 a actividade nos moinhos de água do Guadiana estava terminada.

“Alguns ainda ostentam nas paredes interiores o nome, em português arcaico, dos moleiros que ali trabalharam”, e um razoável número de moinhos surge com a data do último quartel do século XVII, observa o investigador que é natural do Redondo e lembra que um seu antepassado familiar percorria com uma carroça puxada por animais mais de 50 quilómetros para levar grão de trigo a moer nos engenhos do Guadiana.

Apesar das contingências (a violência torrencial das águas do rio, a falta de manutenção e por fim o abandono pelos seus proprietários), boa parte das estruturas moageiras erguidas no Guadiana e nos seus afluentes chegou aos dias de hoje mas na sua maioria em adiantado estado de ruína. Cerca de uma centena ficou debaixo das águas da albufeira do Alqueva, preservadas para a posteridade. Dificilmente se poderá dizer o mesmo das estruturas que se encontram a jusante da barragem.

Moinhos de água ou “alquevinhas”…

Bem cedo na história, as comunidades do sul que viviam nas proximidades do Guadiana encontraram forma de aproveitar a força motriz que as águas do rio ofereciam. Mas para obter esta vantagem era necessário instalar na linha de água uma represa por cada moinho construído. Por isso é que hoje todos se encantam com a beleza que o Guadiana oferece com os seus açudes, pequenas “barragens” predecessoras de Alqueva.

Por isso, faz todo o sentido estabelecer um paralelismo entre as turbinas que actualmente produzem energia eléctrica na barragem do Alqueva e as que equiparam, desde o século XIII, centenas de moinhos do Guadiana para transformar o cereal em farinha destinada ao fabrico do pão e em rações para animais. 

O sistema de moagem estava fundamentado no mesmo princípio hidráulico que hoje associamos ao funcionamento da central hidroeléctrica do Alqueva. Logo, não será excessivo chamar aos moinhos de água do Guadiana de “alquevinhas”.

José Perdigão, técnico de arqueologia, faz esta analogia  quando refere que a água do Guadiana “era a força motriz que movia os engenhos de moagem” e hoje é utilizada “como elemento produtor de energia”.

A experiência acumulada ao longo de séculos pelos moleiros,provou que a velocidade mais adequada para mover às mós seria entre 25 a 30 rotações vezes por minuto. Se fosse mais rápido o produto final era afectado na sua qualidade ao ficar mal amassado, e o grão ia mais rapidamente do centro da mó para a sua periferia, aumentando o seu desperdício. 

A forma engenhosa encontrada para controlar o número de rotações nas mós estava na comporta que regulava o fluxo de água que movia a turbina. O seu volume maior ou menor determinava mais ou menos rotações no sistema de moagem que era constituído por duas mós: uma fixa, designada dormente, e uma móvel, a que moía o grão.

As mós de calcário eram as mais adequadas para o grão de trigo, de que resultava uma farinha mais branca. As de granito estavam mais indicadas para o milho e a produção de rações para animais por serem mais agressivas. A mó com 90 centímetros de diâmetro que está exposta na sede da EDIA, em Beja, pesa cerca de 300 quilos.

Autarcas gostariam de actuar mas não podem

Os presidentes das câmaras de Serpa e Beja, concelhos onde está concentrada a maioria dos moinhos do Guadiana que não foram submersos pelas águas do Alqueva, reconhecem que se trata de um “património riquíssimo”, muito ligado à história local e que necessita de intervenções urgentes que travem a sua ruína.
Mas “pouco podemos fazer”, reconhece ao PÚBLICO Tomé Pires, presidente da Câmara de Serpa. O problema, salienta o autarca, “passa muito pela propriedade dos moinhos”, que são de particulares, a maioria desconhecidos. Resta ao município colaborar quando alguém pede para recuperar algumas estruturas, “o que tem sido feito com alguma frequência, acentua o autarca.

Tomé Pires diz desconhecer que haja programas que possibilitem outro tipo de intervenção mais profunda e global no património moageiro. “Apenas nos são facultados apoios para melhorar os acessos ao rio Guadiana”, frisa o autarca.

O estado actual dos moinhos, prossegue Tomé Pires, exige “preocupação a nível superior e de forma articulada”, assumindo que o seu município “está disponível para avançar na recuperação deste património” desde que sejam criadas condições para essa intervenção, tanto do ponto de vista financeiro como legislativo.

Para João Rocha, presidente da Câmara de Beja, o problema não passa por intervenções pontuais. A sua experiência diz-lhe que “o mais importante é aproximar as pessoas do rio” e desta forma criar empatia, não só com o meio natural, mas com o património existente, nomeadamente os moinhos de água, acentua.
O primeiro passo vai ser dado com “a instalação de um parque fluvial” que beneficia a margem do rio onde se localizam vários moinhos, anuncia João Rocha, que diz estar a negociar com a empresa Infraestruturas de Portugal a utilização de um troço da via férrea entre Beja e Moura que está desactivado desde o final dos anos 80 para facilitar o acesso das pessoas ao rio. No concelho de Beja estão localizados 14 moinhos de água e alguns encontram-se em bom estado de conservação.

A família de Raul Cofones, 40 anos, tem um moinho na ribeira do Enxoé, mesmo junto à confluência com o Guadiana, que foi vendido pelo avô materno ao seu pai, um entusiasta tal com ele na preservação deste património. É raro o fim-de-semana que a família não apronte uma “petisqueira” no moinho do Cubo. É o seu espaço de eleição “que quer manter”. Neste momento, debate-se com um problema provocado por uma cheia que ocorreu no início do século e que rebentou com uma pequena barragem a montante. A torrente de água e lama “entulhou o moinho” e danificou o eixo da turbina que é de madeira de azinho, contou ao PÚBLICO. E como nos dias de hoje é muito difícil encontrar madeira de azinheira, “terá de se encontrar uma solução alternativa para poder por o moinho a funcionar”, compromete-se Raul Cofones. “Gosto muito do moinho e da paisagem envolvente pela tranquilidade que me transmite”, confessa, dizendo que tudo tem sido feito para preservar o moinho que é propriedade da família há várias gerações.

Ana Paula Amendoeira, directora Regional da Cultura, comunga das preocupações dos autarcas, lembrando que “não existe nenhum projecto em curso” para a recuperação ou salvaguarda dos moinhos do Guadiana. “Resta-nos dar o apoio possível e colaborar com outras entidades” em acções pontuais, frisando que “este tipo de património não está classificado, facto que dificulta a sua salvaguarda.

A directora regional sugere que a colaboração entre os municípios que têm moinhos nos seus territórios poderia ser decisiva para “a abertura de um processo de classificação” já que é consensual que se trata de “um património importante”.

A EDIA tem também interesse em salvaguardar este património. Boa parte está debaixo das águas da albufeira do Alqueva e assim permanecerão pelo menos durante 80 anos, tempo de vida útil calculado para a barragem que fechou as comportas em 2002. Para além dos investimentos já realizados na inventariação dos moinhos do Guadiana — e que prossegue nas linhas de água que atravessam os novos blocos de rega —, a EDIA divulga desde o passado dia 12 de Outubro uma exposição estruturada por José Perdigão.

Concebida com o propósito de “dar a conhecer os moinhos de água da região, a exposição pretende “chamar a atenção para as distintas soluções hidráulicas adoptadas na sua construção”. Podem ser observados textos explicativos, imagens, esquemas de funcionamento e mapa de localização, associados a modelos mecânicos movidos a água, que permitem percecionar, a três dimensões, as distintas soluções de produção de energia.

A exposição pode ser visitada aos dias úteis entre as 9h00 e as 18h.

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