As armas e os valões assinalados
Decorre nos últimos tempos, dos dois lados do Canal da Mancha, uma experiência comparativa em tempo real sobre um dos assuntos mais controversos do nosso continente: qual é a melhor forma de ter influência e controle sobre as forças da globalização? Estando dentro ou fora da União Europeia (UE)?
A ideia geral é a de que os países médios e pequenos detêm pouco poder sobre as decisões do grandes atores no comércio internacional, e que até os maiores países europeus estariam melhor se negociassem em nome próprio. Esse foi um dos argumentos principais do "Brexit", agora assumido pelo governo de Theresa May: uma vez libertados das grilhetas do que consideram ser o protecionismo do continente, os britânicos poderiam negociar mais rapidamente acordos comerciais com a Austrália, a Índia e a China. No primeiro caso, algumas declarações simpáticas de políticos australianos foram substituídas por uma decisão formal de não negociar com o Reino Unido enquanto não se soubesse qual será o seu estatuto após o "Brexit". Theresa May esbarrou na impressão de que os indianos só estarão interessados em abrir os seus mercados se o Reino Unido abrir as suas fronteiras — tabu para a base de apoio do governo britânico. E com a China que alavancagem poderá ter um país que, mesmo grande à escala europeia, tem uma desproporção populacional de um para vinte o tempo a correr contra si em qualquer negociação?
Entra o contrafactual. Do outro lado do canal está a Flandres, região de língua neerlandesa da Bélgica, tradicional adepta das teses liberais mas que, na sua demanda por mais poder do governo central, exigiu que as partes constitutivas da federação que é a Bélgica tivesse poder de decisão sobre tratados em que o país participasse. E, numa bela ironia, logo atrás da Flandres está a Valónia, de língua francesa, três milhões e meio de habitantes, tradicionalmente socialista e operária, que decidiu usar esse poder para exigir uma revisão do novo acordo de comércio livre que a UE negociou nos últimos sete anos com o Canadá (conhecido pela abreviatura CETA). Se o Reino Unido tem vinte vezes menos habitantes do que a China, a Valónia tem vinte vezes menos habitantes do que o Reino Unido. Finalmente: qual é a resposta à pergunta com que começámos?
Neste momento a pequena Valónia, apenas uma parte de um estado-membro da UE, tem o poder de permitir ou não acesso a um mercado único com 510 milhões de trabalhadores e consumidores europeus. Já conseguiu forçar a Comissão e o Conselho a produzirem documentos juridicamente vinculativos com garantias de que a carne bovina com hormonas não poderá entrar na UE e de que a exceção dos serviços públicos e da indústria cultural será respeitada, assim como o princípio da precaução em termos ambientais e a negociação coletiva na área laboral.
A questão decisiva em aberto é a da arbitragem que nestes acordos costuma favorecer as multinacionais. Os valões querem um compromisso com a criação de um Tribunal Internacional que funcione complementarmente aos tribunais nacionais e europeus, e conseguiram forçar os canadianos a voltar às negociações, embora sem resultado. Se os valões obtiverem ganho de causa, o impacto será não só para o CETA mas talvezpara as negociações de comércio livre entre a UE e os EUA para o TTIP. O ministro-presidente da Valónia, Paul Magnette, não é um demagogo; na sua carreira académica escreveu livros sobre cidadania europeia e o exercício da democracia a uma escala transnacional. Procura elevar a fasquia deste tipo de acordos e uma vitória sua será uma boa notícia para todos os que exigem mais justiça, transparência e responsabilidade na globalização.
Resta saber por que razão em Portugal, onde a retórica política patriótica é o pão de cada dia, nunca vemos serem discutidos o CETA e o TTIP e muito menos exercidas as prerrogativas parlamentares que nos permitiriam influenciar com mais transparência o resultado final destes acordos. Na ocidental praia lusitana a prática continua a ser esperar até ser tarde de mais. Restam-nos as armas dos valões assinalados.