Donald Trump: a verdadeira obscenidade
O que é criticável, politicamente relevante e imoral é o facto de Trump revelar que assedia sexualmente as mulheres bonitas que encontra, que abusa sexualmente delas e que o faz porque o seu estatuto de estrela lhe permite uma total impunidade.
Uma grande parte dos comentadores, políticos e jornalistas, nos EUA e fora deles, continua a referir-se às declarações de Donald Trump sobre a maneira como trata as mulheres por quem se sente atraído, gravadas em 2005 e agora divulgadas pelo jornal The Washington Post, como “linguagem crua”, “obscenidades” e “piadas de balneário” (sendo que esta última foi a expressão inicialmente usada pelo próprio Trump para tentar minimizar o caso). E os comentários de repúdio vindos do seu próprio campo político, o Partido Republicano, condenam o conteúdo sexual da conversa, o uso de obscenidades e o desrespeito que o candidato republicano evidencia pelas mulheres.
Estas reacções estão de acordo com o ambiente hipocritamente moralista que há muito está instalado na vida pública dos EUA onde, nos mesmos programas de televisão onde se podem ver vítimas esventradas, se substituem por “piiiiii” os palavrões ditos pelos participantes.
No entanto, é bom deixar claro que, se é normal que muita gente tenha ficado chocada com a linguagem utilizada por Trump, esse está longe de ser o problema, como está longe de ser o problema o facto de Trump falar explicitamente de sexo. Ao contrário do que dizia, por exemplo, a TVI, num supremo exercício de eufemística, Trump não fez “confidências sobre as suas aventuras românticas”. Se Trump o tivesse feito, isso poderia ter chocado do mesmo modo a América conservadora e reaccionária, mas não foi isso que Trump fez. O que é verdadeiramente grave na gravação agora revelada é uma questão moral, mas essa questão moral não tem nada a ver com o facto de Trump ter falado de sexo, de ter usado linguagem obscena ou sequer de ter adoptado o estilo gabarola da conversa de balneário de adolescentes.
Se Trump tivesse usado a mesma linguagem para se gabar das suas proezas sexuais e da forma inigualável como consegue satisfazer as suas parceiras, usando vinte vezes a palavra “pussy”, isso não mereceria a mínima atenção em termos políticos e seria mesmo altamente criticável que fosse divulgado publicamente. Se Trump tivesse usado a mesma linguagem para descrever em pormenor um dos seus romances tórridos ao seu compincha do momento, o apresentador Billy Bush, e lhe tivesse contado tudo o que cada um tinha feito ao outro e como e quantas vezes, ninguém teria o direito de ouvir a conversa, Trump não mereceria qualquer crítica e se a gravação dessa conversa fosse intencional seria um crime. Da mesma forma, se Trump tivesse revelado a Billy Bush, num desses momentos de íntima camaradagem masculina de balneário, as suas fantasias sexuais, o que gostaria de fazer e a quem e o que gostaria que lhe fizessem e como e quantas vezes, ninguém teria o direito de aceder a essas confidências nem de lhes dirigir a mínima crítica, por muito chocantes (e eventualmente prejudiciais em termos eleitorais) que elas fossem.
O que é criticável, politicamente relevante e imoral é o facto de Trump revelar que assedia sexualmente as mulheres bonitas que encontra, que abusa sexualmente delas e que o faz porque o seu estatuto de estrela lhe permite uma total impunidade. Não se trata de não mostrar respeito pelas mulheres, um facto já mil vezes evidenciado nas suas diatribes contra Hillary Clinton e outras mulheres. Nem se trata apenas de palavras. Trata-se da orgulhosa admissão de uma prática de degradação sexual das mulheres, do relato de um comportamento criminoso, cuja impunidade é garantida pela sua notoriedade e pela sua riqueza. Essa é que é a obscenidade.