Taxistas só ganharam uma rotunda no dia do tudo ou nada
Milhares de taxistas de todo o país marcharam sobre Lisboa contra a Uber mas o Governo não cedeu um milímetro. O dia foi de tensão máxima. O protesto segue noite dentro.
Impasse. O dia da manifestação em que os taxistas jogavam o tudo o nada contra a intenção do Governo de legalizar as novas plataformas de mobilidade como a Uber e a Cabify terminou sem cedências de parte a parte. O protesto que juntou em Lisboa milhares de motoristas de vários pontos do país está parado há horas na rotunda do Relógio, de onde os taxistas prometiam não arredar pé até que as suas reivindicações fossem atendidas. Mas do lado do Governo parece não haver grande abertura para negociações, como o provam as declarações que foram sendo feitas ao longo do dia por diferentes responsáveis governamentais. Ao fim de quase 19 horas, o bloqueio na rotunda do Relógio, na capital, acabou, sob críticas de muitos taxistas e por recomendação dos líderes associativos do sector. A PSP ameaçou apreender carros e os profissionais acabaram por acatar a recomendação.
O dia da manifestação começou cedo e com uma má notícia para os taxistas vinda China. A meio da madrugada em Lisboa, mas já manhã em Xangai, o primeiro-ministro, António Costa, de visita àquele país, deixou claro que não haveria qualquer recuo por parte do Governo em relação à legislação que tem pronta para regularizar a actividade de empresas como a Uber e a Cabify.
Ao minuto: o filme do dia em que os taxistas marcharam sobre Lisboa
Costa não só garantia que estas empresas, que disponibilizam viaturas descaracterizadas de transporte de passageiros através de aplicações para smartphones, não seriam proibidas em Portugal, como contrariava uma das principais reclamações dos taxistas: “Não haverá limite para o número de licenças” destes operadores.
Acentuando mais uma vez que, com a nova legislação, o Governo está a “regular o mercado” do transporte de passageiros, Costa comparou mesmo esta regulação à legalização das rádios locais na década de 1980. “Foi também isso que se passou com a abertura do mercado às rádios piratas, que depois deixaram de ser piratas, ficando reguladas e em concorrência com as restantes.” Mais: o primeiro-ministro fez questão de elencar, uma a uma, as vantagens que os taxistas têm em relação aos outros peões no mercado, desde os benefícios fiscais às praças de táxi.
Por Lisboa, o ministro do Ambiente, que tutela o sector dos transportes, mostrava uma posição mais flexível que a do primeiro-ministro. Segundo revelou o PÚBLICO, Matos Fernandes abria ligeiramente a porta para o diálogo com o sector do táxi, admitindo estar disponível para algumas alterações na proposta legislativa, com base em contributos que tem recebido no ministério. Deixava, porém, claro que a legislação vai mesmo avançar e entrará em vigor no início do próximo ano.
“Costa, está nas tuas mãos”
Quando, pelas 7h da manhã, os primeiros taxistas começaram a chegar ao Parque das Nações, ponto de encontro do protesto, já sabiam que pouco podiam esperar do Governo. E o principal cartaz que encabeçaria a marcha — “Costa, está nas tuas mãos” — já nem fazia sentido. As mãos de Costa não tinham nada para lhes dar.
Talvez por isso, as principais críticas de Florêncio Almeida (Antral) e de Carlos Ramos (Federação do Táxi) iam para o Governo, em especial para o ministro e secretário de Estado do Ambiente, responsabilizando-os mais uma vez por eventuais “problemas” (leia-se, violência) que pudessem surgir na manifestação.
E os “problemas” surgiram logo na primeira paragem (perto das 10h). Quando uma parte dos táxis (cerca de 4000 vindos de todo o país, segundo os sindicalistas) já estavam junto ao aeroporto, alguns manifestantes disseram ter detectado motoristas da Uber numa bomba de gasolina próxima. Diziam que estavam ali para os provocar e rapidamente o local foi invadido. O espaço comercial da bomba de gasolina fechou de imediato a polícia seria obrigada a fazer a primeira intervenção para afastar os manifestantes do local.
Pouco depois (11h), a cabeça da manifestação deixava o aeroporto mas voltaria a parar poucas centenas de metros à frente, junto à popularmente chamada “rotunda do relógio”, na Av. Marechal Gomes da Costa, sob o viaduto da 2.ª Circular. Alguns motoristas começaram a sair dos carros e a invadir as faixas de rodagem, tentando cortar totalmente o trânsito. Parte do forte contingente policial carregou de imediato sobre eles e os motoristas responderam com empurrões e com o lançamento de garrafas de água, pacotes de sumo e um very-light. Graças ao uso dos bastões, de gás pimenta e com um tiro para o ar de shot-gun, os agentes rapidamente controlaram a situação.
Os dirigentes sindicais atribuíram o “descontrolo da situação” aos agentes, que acusavam de estar “a proteger os ilegais”. E anunciaram uma mudança de planos: os táxis já não iriam desfilar por Lisboa para chegarem à Assembleia da República. Ficariam na rotunda do relógio “os dias que fossem necessários” até terem uma “resposta positiva” aos seus anseios por parte do Governo. Pelas 13h a resposta chegou, com o ministro do Ambiente a chamar os responsáveis sindicais ao ministério.
Cerca de três horas depois, a reunião chegava ao fim. Dela, os taxistas saíram com uma mão cheia de nada e outra de coisa nenhuma. O ministro do Ambiente, Matos Fernandes, repetia quase ipsis verbis as palavras que António Costa tinha dito de madrugada na China, acrescentando existir “uma divergência profunda” entre Governo e taxistas. Referia-se às duas principais reivindicações dos sindicalistas: travar a operação da Uber e Cabify enquanto a legislação não estiver aprovada e criar na nova lei a fixação de contingentes de veículos a estas operadoras.
“Ninguém arreda pé”
Face ao sonoro “não” do Governo, os sindicalistas voltaram à rotunda do relógio e pediram aos seus associados que dali não arredassem pé. “Vamos dormir aqui hoje! Ninguém arreda pé. Ficamos os dias que forem precisos”, gritou-se.
Já ao fim da tarde, a polícia fez saber aos manifestantes que considerava que “o protesto” tinha “passado a bloqueio”. Das duas, uma: “Está a ser privilegiada a via do diálogo, mas ou os taxistas tiram as viaturas ou tiramos nós”, disse um oficial da PSP aos jornalistas.
Deste dia de protesto relevam ainda alguns factos a ele directamente ligados. O Metro de Lisboa registou “um aumento da procura” e reforçou o serviço, não conseguindo, porém, evitar as longas filas para comprar bilhetes. No Porto foi notória a falta de táxis devido à participação no protesto de Lisboa. E os clientes da Uber tiveram muitas dificuldades em utilizar o serviço, que esteve quase sempre em tarifa dinâmica (aumento dos preços das tarifas quando a procura é elevada) e mesmo sem carros disponíveis. A aplicação da Uber na loja da Apple voltou, tal como nos anteriores protestos, a ser a mais descarregada em Portugal.
Uma imagem forte e insólita resulta ainda desta jornada: centenas de turistas carregados de malas a chegarem a pé ao Aeroporto Humberto Delgado. Até quando por ali vão ficar os taxistas é a pergunta que prevalecia à hora do fecho desta edição.