Após Kennedy, “não voltou a haver um grande Presidente”
Abubakar está irritado. Pede desculpa mas não consegue conter a zanga. É domingo em Manhtattan, hora de almoço e chove desde madrugada, efeitos do furacão Mattheu.O trânsito assemelha-se ao de um dia de semana, não há táxis livres nas ruas e aquele homem acabou de expulsar uma mulher do seu táxi. Porquê? Razões políticas.
Há muito tempo que a política não era um assunto tão presente na vida dos nova-iorquinos, uma população heterogénea numa cidade habitada por muitos expatriados, imigrantes, migrantes, gente mais ou menos a prazo, com agendas pessoais que não passam, a não ser excepcionalmente, por criar raízes, e um ritmo de vida que sacrifica quase tudo à necessidade de produzir, de gerar dinheiro e meios para continuar a poder viver ali. Mas neste domingo, a escassas horas do início do segundo debate, Hillary Clinton e Donald Trump concentravam as atenções. "É o debate mais importante destas eleições", refere Abubakar que não consegue deixar de antecipar o embate depois do vídeo revelado na madrugada de sexta-feira. "Aquele homem não tem carácter, é desprovido de qualquer tipo de humanidade. Eu posso esquecer a fuga aos impostos, até as declarações contra os imigrantes, tudo, mas o que ele disse naquele vídeo sobre as mulheres é criminoso, um desrespeito para com toda a gente. A América não pode eleger um homem destes. É aviltante." Diz isto e pede novamente desculpa pelo tom do seu discurso, exaltado, num inglês sem erros mas carregado de sotaque, mãos entre o ar e o volante e muitos olhares pelo retrovisor.
Natural do Bangladesh, Abubakar conta que vive em Nova Iorque há mais de trinta anos e vota nos Estados Unidos. "Estou com Clinton porque não posso estar com um criminoso", justifica, regressando à génese da sua irritação. Nessa manhã, uma mulher entrou no táxi, perguntou-lhe se votava e em quem. Ele respondeu, replicando toda a sua apaixonada argumentação contra Trump e uma "evidência sórdida" que no seu entender daria para provocar um trambolhão nas sondagens, decidir tudo, mas que, no entanto, não convenceu a apoiante do candidato republicano que ele transportava, justamente, no seu taxi. "Ela disse-me que ia votar nele no dia 8 de Novembro!". A incredulidade de Abubakar é a de alguém que não entende como não se distingue uma conversa suja de um flagrante que ele considera criminoso. Para ele, a partir daquela admissão de apoio, ela pactuava no crime e isso era-lhe insuportável." As razões da mulher, nova-iorquina, mãe de uma rapariga como Abubakar, eram, referiu o taxista, legitimadas pela sua convicção de que, não importa como, "Trump teria de ser presidente porque a América tinha de recuperar o seu poder", e que o resto eram fait-divers políticos.
A atutide apaixonada deste americano natural do Bangladesh contrasta com a de Raphael. À hora do debate espera o comboio para Woodbridge, pequena cidade no estado de New Jersey, a uns 45 minutos de Manhattan. "Não me interessa. São os piores candidatos possíveis", diz. "Hillary é uma mentirosa compulsiva ao serviço de Wall Street e Trump alguém pouco recomendável que os republicanos não conseguiram domar. Mas se ele fosse presidente eles teriam de tomar conta dele e pelos menos seria o primeiro presidente a não sair de um sistema político que tem criado e alimentando a corrupção."
Raphael tem 27 anos, nasceu na Colômbia, é cidadão colombiano e americano e nestas eleições "vou lá, deixar o meu voto em branco sem que isso me pese nada na consciência". A última vez que votou tinha 19 anos. "Em Obama?"; "Claro que não. McCain", responde, referindo pouco depois que o bom desta campanha foi Bernie Sanders. "Ele criou uma onda de entusiasmo, fez com que muitos jovens se interessassem pela política." É uma opinião partilhada por muita gente, a de que Sanders despertou eleitores, à direita e à esquerda. Raphael, no entanto, não se revê nesta bicefalia política "responsável pelo colapso social a que a América, chegou". Para ele, como para muitas pessoas ouvidas por estes dias, parece valer menos o que Trump diz do que o que Trump representa: alguém fora de um sistema que consideram viciado e isso pode continuar a explicar que o trabulhão que Abubakar vaticinava não tenha contecido.
O comboio está a chegar. Raphael acena. Não fala em Trump ou Hillary, mas em John Kennedy. "Não voltou a haver um grande presidente na América."