O secularismo republicano francês, fixado com força de lei no conceito jurídico-político da laicidade, que institucionaliza a separação entre o Estado e a religião, consagra logicamente “a defesa da liberdade de consciência individual contra todo o proselitismo” e, por conseguinte, a proibição de “signos religiosos ostensivos” na esfera pública. O princípio da laicidade é o da universalização da cidadania republicana de modo a anular o comunitarismo e os seus efeitos de segregação. Assim, ordem temporal, o saeculum, e ordem intemporal, a religião, devem manter-se estritamente separados. A laicidade francesa visa a formação de uma cidadania esclarecida que responda à injunção iluminista do “ousar saber” e do uso público da razão. Entendida nesta perspectiva, a laicidade opõe-se a um multiculturalismo que reforça o poder regressivo do dever de pertença étnico-religiosa. Quando se passa desta dimensão teórica da laicidade para os desafios reais – sociais e políticos – com que ela se confronta, as coisas complicam-se bastante, como sabemos. A verdade é que a laicidade francesa, que no seu princípio visa a neutralização da afirmação religiosa em tudo o que é tutelado pelo Estado, se tornou a ideologia de uma república obcecada com o religioso, praticando uma espécie de teologia política negativa que instaura o religioso como categoria separada. A noção de laicidade transporta consigo a sombra daquilo que quer negar, tal como a noção, usada por Habermas, de sociedade pós-secular. Porém, Habermas indicou explicitamente essa sombra, em vez de recalcá-la, desenvolvendo a ideia de que essa designação – a de “sociedade pós-secular” – supõe que a religião continua a afirmar-se num ambiente secular. A categoria de laicidade faz parte de um léxico constitutivamente teológico-político, está vinculada precisamente ao que ela quer subtrair. E essa contradição no plano teórico transfere-se para o plano pragmático, manifesta-se na realidade. A teologia política e a teologia económica determinam as regras do nosso tempo e do mundo em que vivemos. E a máquina teológico-política continua a funcionar a toda a velocidade, por mais que a modernidade tenha colocado grãos de areia na engrenagem. Uma manifestação desta vitalidade pode ser vista na recente proliferação de livros e de debates filosóficos, tanto na Europa como nos Estados Unidos, sobre a teologia política. Nunca a afirmação com que Carl Schmitt abre um capítulo da sua “teologia política” tinha sido tão citada e glosada: “Todos os conceitos pregnantes da teoria moderna do Estado são conceitos teológicos secularizados”; nunca o fragmento de Walter Benjamin sobre O Capitalismo como Religião – onde se diz que o capitalismo é uma religião culpabilizante e um culto contínuo sem interrupções nem feriados – foi tão lido; nunca a relação semântica entre débito e culpa, que se encontra na tese de Max Weber sobre a ascese protestante da origem do capitalismo, foi tão actualizada. É evidente que o conceito de teologia política tem significados diferentes, conforme os autores: tanto é a legitimação religiosa do poder como a força política da religião, tanto é a influência do teológico sobre o político (segundo a tese de Schmitt), como a influência do político sobre o religioso (segundo a tese de Jan Assmann, um outro nome importante nesta questão). Seja como for, a persistência do quadro teológico-político como um horizonte nunca ultrapassado deixa perceber as razões pelas quais o conceito de laicidade está completamente armadilhado. E a prova está à vista.
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