Dilma, o fim de um tempo no Brasil
Num país que passou da euforia à depressão em apenas quatro ou cinco anos, Dilma vai ser a carga que se despeja ao mar no decorrer da tempestade.
Nas acções de campanha contra a destituição em que participou a ainda presidente do Brasil, era impossível não notar numa fotografia gigante colocada ao fundo do palco onde Dilma Vana Rousseff, então com 22 anos, mostrava um olhar altivo, quase arrogante, no decorrer do julgamento que a condenou por participar na luta armada contra a ditadura militar. O cartaz tinha já aparecido na campanha eleitoral de 2014 e a sua recuperação do baú da memória não se justifica apenas pelo seu valor iconográfico ou pelo sublinhado que faz ao perfil de uma combatente. Dilma e o PT usaram-no numa clara tentativa de fazer uma ponte no tempo e de advertir o Brasil que o país está a regressar ao seu passado traumático. Dilma foi julgada e condenada por lutar contra a ditadura em 1970 e Dilma volta a ser julgada e condenada em 2016 num “golpe” urdido pelas mesmas forças conservadoras que durante mais de duas décadas toleraram o poder e a arbitrariedade dos generais em Brasília. Em vez do “chorinho” que a colocaria num papel de súplica, Dilma preferiu ser a rapper que denuncia e ataca de frente os seus algozes.
Nessa tentativa de criar uma lógica que torne compreensível a destituição, Dilma e os seus apoiantes passam ao lado de uma questão essencial: hoje, o Brasil é uma democracia. Jovem, com defeitos, com uma das piores classes políticas da terra, mas uma democracia que respeita a independência dos poderes e a liberdade de imprensa. E neste particular, quer o Tribunal de Contas da União, quer o Supremo Tribunal Federal cumpriram os formalismos constitucionais exigidos e concluíram pela existência de crimes de responsabilidade na governação de Dilma. Ainda assim, Dilma insiste na tese do golpe. Um golpe pensado e executado implacavelmente nos dois órgãos do Congresso do Brasil. E, olhando para lá dos formalismos, é difícil não conceder à Presidente e aos seus apoiantes razão nos seus argumentos. Esconder gastos para retocar as contas públicas ou proceder a despesas sem cobertura do Congresso é politicamente reprovável; mas se isso desse direito automático a uma destituição, poucos presidentes do Brasil e até de democracias mais consolidadas teriam cumprido na íntegra os seus mandatos.
Sim, Dilma cometeu violações à lei, governou mal, prometeu que não haveria austeridade na campanha da sua reeleição e, chegada a Brasília, esqueceu as suas promessas e governou alinhada com a direita e os mercados; Dilma é o rosto de uma crise severa, com o PIB a recuar mais de 6% em 2015 e este ano, com o desemprego a disparar, o investimento a perder gás e todos os sonhos da era Lula a desfazerem-se sem solução à vista; Dilma, no seu jeito de “sargentona”, foi incapaz de consolidar o seu bloco de apoio no Congresso, perdeu aliados importantes, geriu sensibilidades com arrogância e foi construindo a muralha que a isolou. Depois, Dilma não está implicada no inominável escândalo da Petrobras como o homem que lhe montou a armadilha da destituição, Eduardo Cunha (entretanto corrido da presidência da Câmara dos Deputados) nem apresenta o mesmo grau de suspeição que ameaça o seu putativo sucessor e ex-vice-presidente, Michel Temer. Mas todos estes “crimes” tinham de ser julgados por quem, apesar de todos os sinais, a reelegeu com 54,5 milhões de votos há menos de dois anos.
O seu julgamento usa as “pedaladas fiscais” como um pretexto eficaz para a condenar, mas, no fundo, os senadores ou uma grande parte dos brasileiros sabem que a armadilha é moralmente duvidosa e politicamente questionável. Dilma é odiada pelo que é e ainda mais pelo que representa. Muitos dos que estiveram com ela no Governo execram-na agora por puro oportunismo político. Outros porque perceberam que as prebendas dos tempos de euforia são mais raras nos dias de chumbo da crise. Outros ainda, como o senador do Roraima Telmáro Mota, porque o PT não apoiou o seu candidato à prefeitura (município) de Boa Vista. A destituição de Dilma tem por isso a trama de uma novela e a narrativa de um drama. Um drama que atenta contra a substância profunda da legitimidade popular, que contorce a leitura da Constituição e impõe pela deliberação do Congresso uma solução política de evidentes contornos classistas que os brasileiros recusaram em quatro eleições consecutivas. Derrotado nas urnas, o Brasil urbano, branco, oligárquico, mais rico e mais educado do Sul e do Sudeste encontrou no Parlamento um esquema para recuperar o poder que, na prática, só lhe escapou temporariamente com Getúlio Vargas, com João Goulart (afastado pelo golpe de 1964) e com Lula da Silva – é verdade que a social-democracia de Fernando Henrique Cardoso foi fundamental para o lastro que reconstruiu a classe média.
Num país que passou da euforia à depressão em apenas quatro ou cinco anos, Dilma vai ser a carga que se despeja ao mar no decorrer da tempestade. Restava-lhe anunciar para o futuro que, para lá do formalismo, a sua destituição é um atestado de menoridade aos brasileiros. Dilma não merecia ter ganho as eleições de 2014 e o PT tinha há muito esgotado o seu projecto político que, com todos os erros, deixou um país mais decente, mais justo e muito mais esperançoso. Mas o decreto da sua punição tinha de ser assinado pelos brasileiros, nunca por uma turba perigosa de deputados e senadores onde grassa a demagogia, o populismo desbragado e a corrupção.