Nas Filipinas ninguém está a salvo da “protecção” de Duterte
O novo Presidente tinha prometido iniciar uma luta violenta contra o narcotráfico e está a cumprir. A contagem de corpos não pára de subir, mas o apoio à guerra de Duterte parece inabalável.
O almoço de Danica Garcia foi interrompido por uma rajada de tiros. O alvo era o seu avô, suspeito de envolvimento numa rede de tráfico de droga, mas foi a criança de cinco anos que morreu, baleada na cabeça. Danica tornou-se na mais jovem vítima da impiedosa guerra contra as drogas lançada pelo novo Presidente filipino, Rodrigo Duterte, e que já matou mais de 1900 pessoas.
Não é fácil conseguir acompanhar o “progresso” da operação. O site de informação Philippine Daily Inquirer tem publicado actualizações semanais da contabilização das mortes de alegados traficantes e toxicodependentes.
“24 de Agosto de 2016: 4:30 a.m. — Mario Calumpiano, suspeito consumidor de droga, Cidade de Cebu, morto por atiradores desconhecidos. 2:20 p.m. — Rogelio Bato Junior, advogado do suspeito traficante Kerwin Espinosa Junior, actualmente em fuga, Tacloban, Leyte, morto por atiradores desconhecidos. 2:20 p.m. — Angelika Bonita, companheira de 15 anos de Bato, Tacloban, Leyte, morta por atiradores desconhecidos.”
Na terça-feira — no mesmo dia em que Danica foi assassinada — foi apresentado o primeiro balanço da guerra contra as drogas. Em sete semanas, tinham sido abatidas 1916 pessoas, mas apenas 40% foram mortas em operações policiais — 1160 morreram às mãos de grupos de vigilantes “não identificados”. Geralmente, os cadáveres aparecem enrolados em fita adesiva e com cartões com mensagens como “sou um traficante, não me imites”. A polícia diz que os agentes são instruídos para atirarem apenas em situações de legítima defesa. Mas não há notícias de qualquer investigação às execuções perpetradas pelos grupos de milicianos.
Na verdade, o próprio Presidente, eleito em Maio, parece encorajar os cidadãos a fazerem justiça pelas próprias mãos. “Se conhecerem alguns viciados, vão em frente e matem-nos vocês próprios, já que obrigar os pais a fazê-lo seria demasiado doloroso”, disse Duterte, um dia depois de tomar posse. Aos polícias jurou protecção pessoal, sempre que matassem suspeitos no exercício dos seus deveres.
A receita de Duterte não é inédita. Este ex-procurador de 71 anos fez carreira política como autarca de Davao, uma metrópole de mais de 1,5 milhões de habitantes na ilha de Mindanao, onde durante vários anos liderou uma guerra contra os narcotraficantes que lhe valeu a alcunha de “Justiceiro”. Um relatório de 2009 da Human Rights Watch revela os pormenores das execuções extrajudiciais levadas a cabo por grupos de vigilantes.
“Os atiradores normalmente chegam em grupos de dois ou três numa motorizada sem matrícula; usam chapéus de basebol e camisas ou casacos com os botões apertados, aparentemente para esconder as suas armas, e atiram ou esfaqueiam as vítimas sem aviso, frequentemente à luz do dia, sem grande preocupação com aqueles que testemunham o crime”, descreve a investigação.
Durante a campanha eleitoral, Duterte nunca escondeu que a sua intenção era aplicar a fórmula de Davao a todo o país. De forma desconcertante, garantiu que os peixes da Baía de Manila iriam “engordar” por causa dos corpos de traficantes e toxicodependentes que seriam atirados ao mar.
Selfies com a polícia
O seu braço direito na guerra em curso é Ronald dela Rosa, chefe nacional da polícia, velho conhecido de Duterte dos tempos de Davao. Foi ele que, sem esconder o orgulho, apresentou esta semana os números dos suspeitos assassinados. À saída da audição parlamentar, “Bato”, como é conhecido, deparou-se com uma multidão que lhe pedia para posar para selfies, descreve a Reuters. As suas declarações são tão coloridas como as de Duterte — há poucos dias referiu-se à morte de um alegado traficante como uma “prenda de anos” para o secretário do Interior.
“Sejam apoiadas pelo Estado ou não, eu diria que, no mínimo, todas estas mortes são inspiradas pelo Estado”, disse recentemente à revista Time a senadora Leila de Lima. É ela que tem encabeçado a tímida oposição aos métodos duros de Duterte, mas por isso já tem a cabeça a prémio. Depois de ter pedido ao Presidente para “travar esta loucura”, foi acusada de ter ligações a redes de narcotráfico. E foi o próprio Duterte a assumir as acusações.
Numa declaração televisiva em que nomeou cerca de 160 dirigentes políticos, juízes e militares alegadamente envolvidos no negócio das drogas, Duterte mostrou um organigrama em que Leila de Lima aparecia no topo. “Estás acabada”, declarou o chefe de Estado.
A tarefa da senadora parece inatingível. Duterte tem a opinião pública do seu lado — uma sondagem de 20 de Julho atribuía-lhe uma taxa de aprovação de 91% e outro estudo mostrava que mais de 60% dos inquiridos confiam que irá cumprir as suas promessas — e o resultado das eleições revelou que o seu apoio abrange tanto as classes mais baixas, como a elite empresarial e até alguns sectores da esquerda. O famoso pugilista Manny Pacquiao, que também é senador, pediu ao Congresso o regresso da pena de morte — algo que também chegou a ser referido por Duterte durante a campanha.
“Parece haver um nível de aceitação da forma como a guerra contra as drogas de Duterte tem sido conduzida”, disse à New Yorker a secretária-geral da ONG de defesa dos direitos humanos Karapatan, Cristina Palabay.
Duterte apresentou-se como o único capaz de impedir as Filipinas de se tornarem num “narco-Estado”, mas as estatísticas mostram que o consumo de drogas neste país de mais de cem milhões de habitantes não é assim tão preocupante. Segundo os dados do Gabinete para o Crime e Drogas da ONU, o consumo de anfetaminas em 2014 atingiu 2,35% da população entre os 15 e os 64 anos — que é um dos valores mais elevados do mundo, mas está em linha com o registado nos EUA ou na Austrália. Noutros tipos de drogas, como o ecstasy ou os opiáceos, o consumo entre os filipinos é bastante baixo.
Os EUA, importantes aliados das Filipinas, revelaram preocupação com a violência da guerra contra o tráfico de droga e pediram às autoridades policiais que ajam de acordo com “as suas obrigações para com os direitos humanos”. A ONU fez reparos semelhantes e Duterte ameaçou abandonar a organização. O sinal é claro — a luta contra as drogas irá sobrepor-se a tudo e a todos.