Ainda os incêndios das matas: prevenção e reestruturação
Não existe no ADN da maioria dos nossos políticos o gene da sabedoria do longo prazo — todos querem fazer figura rapidamente.
Desde há décadas, em todos os estios em que ocorrem fogos nas nossas matas, toda a gente, desde ministros a bombeiros e a outros responsáveis, proclama que desta vez é que é — vamos avançar com a prevenção e a restruturação das “nossas florestas”.
Começo por uma questão de terminologia para clarificar alguns conceitos e precisar do que falamos: nós não temos florestas senão em alguns recantos residuais — o que temos são matas… “Silvicultura”, a ciência das matas, vem de “silva” da trilogia do direito romano ager — saltus — silva. Silva são as matas usadas e trabalhadas pelo homem. Daí que os técnicos se devam chamar engenheiros silvicultores e não engenheiros florestais
Falar de pinhais e eucaliptais como florestas é um embuste; eles têm pouco duma floresta, que é um ecossistema complexo — eles são apenas povoamentos de “pau a pique” para toros destinados às celuloses.
Quanto à prevenção, ela abrange duas situações: a vigilância e a limpeza permanente das matas.
Digam o que quiserem dizer, no meu entender, a vigilância eficaz e mais racional é feita através da quadrícula de postos e casas florestais, cobrindo o território; hoje em dia, com as novas técnicas de comunicação e observação, certamente a quadrícula que existia antes poderá ser revista e reduzida, mas é indispensável.
Não é com rondas campestres de vez em quando que se vigiam as matas; é com uma permanência dos guardas florestais no terreno.
A vigilância não se limita a prevenir os incêndios nos 2 ou 3 meses da Verão, ela é tão ou mais importante do que isso ao longo dos restantes meses do ano, já que os guardas florestais — e não os polícias da GNR — enquadrados pelos engenheiros e outros técnicos numa cadeia hierárquica de conhecimentos e de atitude perante o território, devem vigiar a limpeza das matas e garantir a saída do material retirado com essas limpezas, que constitui o principal combustível dos fogos.
Aí uns 90% das nossas matas são propriedades particulares, muitas delas abandonadas, por explorar ou mal explorada, por isso o Estado tem obrigação de intervir e obrigar os proprietários a manter o território em segurança.
Que me lembre — e não sei se ocorre noutros países — na Suécia há mais de 50 anos que o Estado intervinha nos terrenos particulares cujos donos não podiam ou não queriam fazê-lo.
Em Portugal já existiu um Fundo de Fomento Florestal que se destinava a arborizar os terrenos particulares, mas foi extinto; se funcionava mal podia ter sido revisto, mas entre nós é hábito em vez de melhorar um organismo que funciona mal, acaba-se com ele.
O Estado é o responsável pela boa utilização do espaço nacional. Se um proprietário não podia ou não queria encarregar-se da arborização da sua propriedade, o serviço fazia-o e, quando a mata estivesse a dar rendimento, ressarcia-se das despesas e devolvia depois o terreno ao seu dono.
Esta ideia não é de hoje, desde o Séc. XIII que a Lei das Sesmarias determinava que as terras abandonadas ou mal cuidadas passassem para a posse o Estado, esquerdistas avant la lettre…
Não há é coragem política para voltar a criar a rede de vigilância permanente das serras e vão ser invocadas várias razões que se adivinham mas não adianto — nenhum governante alguma vez admite refazer o que foi desfeito por si ou por um colega de Partido… Já quase ninguém se lembra quem foi o ministro da Agricultura que extinguiu o Corpo de Guardas Florestais, mas quem trabalhava nesses anos nos Serviços Florestais não esquece, com certeza…
Além disso é ao Estado que compete definir a política florestal, pois ela é decidida para décadas no sentido de favorecer o País — mas até aqui tem sido para favorecer os eucaliptais e a indústria da celulose…
Quanto á reestruturação das matas, o país continua à espera. Não existe no ADN da maioria dos nossos políticos o gene da sabedoria do longo prazo — todos querem fazer figura rapidamente. Ora, floresta e mata são realidades de longo prazo, donde a dificuldade dos políticos em decidirem políticas de reconversão florestal que não darão votos a curto prazo.
A última legislação de liberalização do eucalipto é antipatriótica e é mais um triste exemplo da sujeição de quem a decidiu ao lobby poderosíssimo da industria da celulose; chamar petróleo verde e floresta aos eucaliptais é uma farsa lamentável; e é criar maiores dificuldades para o futuro do território. Porquê?
Porque a principal função da floresta, ou da mata se for equilibrada, até mesmo antes da produção de lenho, é a conservação da água no solo; as encostas dos vales e as cabeceiras das linhas de água em particular devem ser arborizadas recriando ecossistemas estáveis e equilibrados, pois é sobretudo nessas situações que se gera a água e se armazena no solo. Numa situação ecogeográfica como a nossa, com a previsão dos cientistas para uma crescente aridez nas nossas latitudes, a escassez de água poderá ser, dentro de poucos anos, um foco de grandes conflitos e de grandes tragédias. Já devíamos estar desde há décadas — desde que os políticos falam em reconverter a “floresta” — a preparar as nossas matas para essa função crucial para a nossa própria sobrevivência.
A falta de consciência ecológica e ambiental de muita da nossa população e de muitos dos nossos governantes, partido atrás de partido, é a principal razão da incapacidade de se proceder a uma real reestruturação do património silvícola português.
No meio desta tragédia dos fogos das matas, mais uma vez se realça a coragem e o sofrimento das populações, de repente fustigadas pela desgraça e sem grandes ou nenhumas esperanças que alguém lhes valha; e igualmente a heroicidade — porque é de heróis que estamos a falar — dos milhares de homens e mulheres, bombeiros profissionais e voluntários, que sem desfalecimento combatem as chamas olhando-as de frente como quem enfrenta o dragão mítico. Esta não é apenas uma figura de estilo — é o preito de homenagem justa a quem a merece de forma heróica.
Ex-administrador florestal, fundado e 1.º presidente do SNPRPP, Professor associado da Universidade do Algarve