Uma Justiça que não se legitima perante a sociedade

As leis e os seus mecanismos devem servir a justiça humana pois essa é, na verdade, sua única e fundamental razão de ser.

O caso da agressão perpetrada pelos filhos do embaixador do Iraque ao jovem Ruben Cavaco atirou para os órgãos de comunicação social uma acesa discussão jurídica sobre a questão da imunidade diplomática dos agressores. Para quem, como eu, trabalha na justiça criminal, foi sem surpresam que constatei a forma veemente como um distinto Senhor Procurador da República, defendeu em directo, num debate televisivo, a aplicação automática da norma da Convenção de Viena de 1961 que garante a total imunidade dos agressores, não sendo possível, e citando, “persegui-los criminalmente”. Confrontado com a possibilidade de um titular de imunidade diplomática cometer um genocídio em massa pela colocação de um explosivo num estádio de futebol cheio de gente, o Senhor Procurador voltou a insistir que não se poderia perseguir criminalmente o autor desse crime.

O caso em apreço traz à liça uma das questões que mais me aflige enquanto advogado e que se traduz na crescente antinomia existente entre o formalismo positivista que cada vez mais caracteriza a nossa justiça penal (e que permite que, por exemplo, seja decretado a “torto e a direito” a especial complexidade dos processos, permitindo assim manter meses a fio os arguidos em prisão preventiva), e a realização da justiça.

Não ponho em causa que o formalismo constitui o elemento fundador tanto da efetividade da tutela jurisdicional quanto da segurança. Contudo, preocupa-me que o valor da segurança jurídica se traduza num imobilismo cego da justiça, que revela incapacidade de acompanhar as mudanças na sociedade, originando situações em que é a própria justiça que é atingida, o que no limite põe em causa a própria ordem jurídica, mormente no plano da efectividade da tutela jurisdicional. Ora, nem os magistrados podem ser máquinas silogísticas, nem os processos soluções de precisão matemática. O processo de aplicação do direito deve ser uma obra de conformação do geral ao concreto, um trabalho permanente de adaptação e até de criação, até porque o legislador não consegue prever todas as situações. Perante a gravidade dos factos que envolveram os filhos do embaixador do Iraque, justificava-se plenamente uma maior elasticidade da justiça penal portuguesa, que se mostrou incapaz de promover uma mudança de paradigma, preferindo esperar pelo levantamento da imunidade diplomática dos agressores, o que redunda numa situação perniciosa, nefasta e manifestamente injusta. Citando o Tribunal Constitucional espanhol, “(...) as normas que contêm os requisitos formais devem ser aplicadas tendo-se sempre presente o fim pretendido ao estabelecer-se os ditos requisitos, evitando qualquer excesso formalista que os converteria em meros obstáculos processuais e em fonte de incerteza e imprevisibilidade para a sorte das pretensões em jogo”.

No caso de Rúben Cavaco, a justiça portuguesa optou por um formalismo oco e vazio, incapaz de servir às finalidades da justiça, atentando contra princípios como o da efectividade da tutela jurisdicional, promovendo uma ruptura com o sentimento de justiça. Chegou pois o tempo de impor um formalismo-qualitativo em detrimento de um formalismo cego. As leis e os seus mecanismos devem servir a justiça humana pois essa é, na verdade, sua única e fundamental razão de ser. Para tal é necessário apelar à equidade, à finalidade essencial dos instrumentos jurídicos. A finalidade da imunidade diplomática nada tem a ver com o caso concreto da agressão ao Rúben Cavaco. Deve ser o interesse público a impor a manutenção ou a não aplicação da regra, que não pode ser vista como um valor absoluto, sagrado e abstrato.

A solução do dilema entre realização da justiça e o respeito pelo formalismo legal tem de radicar no sistema jurídico visto como um todo, nos princípios que dele emanam e nos valores sociais e culturais dominantes no seio da sociedade em cada momento da história. Nesse esforço de equilíbrio deve ser tida em conta a apreciação da finalidade essencial dos institutos jurídicos. Só com esse esforço é que a justiça se pode legitimar perante a sociedade.

Advogado

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