"Portugal pode e deve impedir os suspeitos iraquianos de saírem do país"
O jurista britânico Mark Stephens, especialista em direito público internacional, diz que mesmo nos circuitos diplomáticos, a imunidade não pode ser invocada ou aceite em qualquer circunstância.
Mark Stephens, da firma Howard Kennedy, é especialista em direito público internacional e direitos humanos, e conhecido como "um advogado de causas perdidas" – representou, entre outros, artistas em processos de liberdade de expressão ou os representantes nos protestos dos mineiros na era Thatcher. É também autor de artigos recentes na imprensa britânica a defender o fim dos abusos da imunidade diplomática, de que diz haver muitos exemplos pelo mundo fora. Numa entrevista por telefone, diz que é "vergonhoso" invocar-se a imunidade diplomática nas circunstâncias do caso de Ponte de Sor sobre o qual leu na imprensa internacional.
Diz que o conceito de imunidade diplomática está a mudar. De que forma?
A Convenção de Viena foi criada em 1961 para proteger embaixadores e chefes de governo dos perigos de trabalharem em ambiente hostil mas abrangia um número limitado de pessoas. Temos uma lei que era provavelmente apropriada para a época, mas que está em mudança. Agora existem muito mais cargos reconhecidos que permitem ter imunidade diplomática.
Nas embaixadas e também nas organizações internacionais?
Sim. Tem havido uma proliferação de pessoas de quem se diz gozarem de imunidade diplomática. Ou seja, há pessoas que cometem crimes muito graves, de pedofilia, abuso de crianças ou de homicídio, e que reclamam essa imunidade. O que acontecia antes era que podíamos confiar na qualidade do diplomata, enquanto pessoa íntegra, para apenas reclamar a imunidade num caso verdadeiramente relacionado com o seu trabalho. Agora, há problemas com pessoas que pediram o estatuto diplomático. E esta é cada vez mais uma realidade a tal ponto que a ONU organizou uma conferência sobre a problemática das pessoas que não são responsabilizadas, por exemplo, por crimes contra crianças, por serem intocáveis.
Diria que a Convenção de Viena deixa margem para os Estados, que acreditam os embaixadores, lidarem com cada situação em particular?
Nalguns países, os tribunais tendem a tomar posição e dizer que a imunidade diplomática não cobre certas situações. Os Estados Unidos já o fizeram no caso de diplomatas sauditas que levaram para os Estados Unidos empregados, em situação de escravatura, para a embaixada, havendo acusação e condenação dos responsáveis, apesar de gozarem de imunidade diplomática, sob o argumento de que se trata de uma violação fundamental dos direitos humanos que não pode ser tolerada. Alguns podem reclamar essa imunidade diplomática, mas é importante questionar se está ou não certo que esta pessoa possa efectivamente gozar dessa imunidade.
São os tribunais que decidem?
Os tribunais começam a questionar-se, por exemplo, sobre se a mulher do embaixador, ou os filhos ou os funcionários da embaixada devem ter imunidade diplomática associada à capacidade de o embaixador exercer livremente a sua função.
O argumento não é o de que ao não proteger os familiares não se protege o embaixador de pressões ou ameaças num país hostil?
Sim, mas o que temos aqui não é isso. Temos um crime. E se estes dois jovens forem autorizados a sair do país, efectivamente eles estarão a fugir à justiça. E seria vergonhoso se as autoridades o permitissem. Poderiam dizer que não reconhecem a imunidade diplomática de filhos, que são alegadamente uns bandidos.
Quem pode impedir isso? A autoridade judicial ou o Ministério dos Negócios Estrangeiros?
Qualquer um: o tribunal, o ministro dos Negócios Estrangeiros ou o Governo. Cada um vai estar a atirar [a responsabilidade] para o outro. Mas na realidade todos têm o direito de o fazer. E não o fazerem isso é não estarem à altura das consequências para a vítima.
A Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas prevê liberdade de circulação.
Mas eles não são livres de sair. Eles podem ser impedidos de sair. A autoridade judicial que investiga este crime pode retê-los a partir do momento em que eles são constituídos arguidos.
A autoridade judicial diz que a imunidade impede que eles sejam arguidos.
Isso é porque não querem incompatibilizar-se com o Iraque. Não é porque não haja responsabilidade, e o problema é esse. Deviam assumir uma posição mais robusta e é de lamentar que não o tenham feito. Na realidade, penso que é vergonhoso que não o tenham feito. Se vão conceder a imunidade diplomática a estes dois suspeitos, o rapaz que foi vítima da agressão poderá processar o Estado português ou o Estado iraquiano por não o indemnizar por isso. Se ele ficar com sequelas [da agressão] e precisar de cuidados médicos para o resto da vida, ele deve ser indemnizado por isso. Nessas circunstâncias, a imunidade não é de graça.
De acordo com a Convenção de Viena quem pode levantar a imunidade é o país de origem.
Mas com isso voltamos às duas questões que eu já referi e que não são lineares. Por um lado, se os filhos podem, nestas circunstâncias, ter imunidade diplomática. E por outro, se as autoridades portuguesas não deviam agir de outra maneira. É muito fácil dizer que quem tem imunidade diplomática está livre. É muito mais difícil olhar de facto para a lei. O rapaz de 15 anos tem direito a processar tanto as autoridades portuguesas como as autoridades iraquianas por terem permitido que os suspeitos tenham saído do país.