Quem vai ajudar os dois milhões de pessoas de Alepo?
Não há consenso sobre como permitir ajuda humanitária para uma população que quase não tem água corrente e é bombardeada todos os dias. O bastião rebelde de Alepo, onde há mais privações, parece ter sido bombardeado com gás de cloro.
Alepo está dividida em domínios controlados por rebeldes e regime sírio e ambos sofrem por estes dias as consequências das violentas batalhas que se travam pelo domínio da cidade. Rockets, bombardeamentos e disparos indiscriminados de artilharia mataram mais de cem civis só nas duas últimas semanas. A situação mais alarmante vive-se na zona oriental, controlada pelos insurgentes, onde vivem perto de 300 mil pessoas e quase todos os hospitais foram atingidos por bombas do Presidente Bashar al-Assad e a sua aliada Rússia. Restam apenas 35 médicos nestes bairros.
O alerta humanitário lançado no início desta semana pelas Nações Unidas, contudo, diz respeito às duas partes daquela que era a maior cidade da Síria antes da guerra e em que, juntas, residem cerca de dois milhões de pessoas. O cerco do regime fechado a partir do Norte e as operações rebeldes para romper o bloqueio a partir do Sul encerraram as duas grandes vias de abastecimento para os dois lados da cidade. Os insurgentes têm apenas uma via improvisada e perigosa — constantemente bombardeada — para os seus domínios. O regime tem uma alternativa mais eficaz, mas, mesmo assim, insuficiente.
Desde que se iniciaram os grandes combates por Alepo que os preços da comida em ambos os domínios da cidade dispararam. Aconteceu o mesmo com o valor dos combustíveis, algo particularmente dramático para as instalações de cuidado médico, que operam sobretudo com geradores. A situação piorou durante o fim-de-semana: as Nações Unidas afirmam que o grosso da cidade ficou sem água corrente e que a que existe nos poços não basta. A ONU faz um pedido: “No mínimo, precisamos de um cessar-fogo total ou 48 horas semanais de trégua para chegar às milhões de pessoas necessitadas em Alepo.”
As facções que combatem por Alepo ainda não chegaram a um consenso sobre como dar apoio humanitário à sua população. Moscovo anunciou pela manhã desta quinta-feira que está preparada para interromper os seus bombardeamentos por três horas todos os dias, das 10h às 13h. As tréguas começariam já esta quinta, mas rebeldes e médicos na zona oriental afirmam que as bombas continuaram a cair e que o cessar-fogo, como a oferta de corredores humanitários, anunciados há semanas, são manobras políticas. “O anúncio serve para consumo mediático”, disse o porta-voz de um grupo rebelde, Jaysh al-Islam.
As negociações nos bastidores, como os violentos combates nas ruas, prosseguiram ao longo do dia. As Nações Unidas criticaram a oferta russa, mas adiantavam ao final da tarde que se avizinhavam negociações entre Moscovo e Washington para acertar uma estratégia humanitária. Stephen O’Brien, coordenador da ONU para a assistência humanitária de emergência, diz, contudo, que o que há agora em cima da mesa não chega: “Quando nos oferecem três horas, temos de nos interrogar: o que é que se pode fazer nestas três horas? Conseguiremos suprir as necessidades ou chegaremos só a uma pequena parte?”.
O enviado especial das Nações Unidas para a Síria, Staffan de Mistura, insiste em dizer que espera que as negociações de paz se retomem antes do final do mês. Mas em Alepo vivem-se o que muitos dizem ser os combates mais importantes e violentos dos cinco anos de guerra civil. Os rebeldes lutam por continuar relevantes; Assad e o seu regime combatem para se tornar inevitáveis. Muito ficará decidido nos cercos que resistirem quando estiverem terminadas as operações em curso. Os dois lados mobilizaram tantos recursos que não se querem arriscar a perder. Morreram quase mil soldados em meio mês.
Sufocar com uma bomba
Pelo meio estão os civis. Horas antes da proposta russa de uma trégua diária, 25 dos 35 médicos que ainda trabalham na zona oriental de Alepo enviaram uma carta ao Presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, pedindo-lhe que trave os bombardeamentos a hospitais na Síria. Segundo eles, deram-se 42 ataques a instalações médicas sírias só no último mês, o que equivale a um bombardeamento a cada 17 horas. “O que nos dói mais, como médicos, é escolher quem vive e quem morre. Há crianças que chegam às nossas salas de emergência tão feridas que temos de dar prioridade aos que têm melhores hipóteses, ou então não temos equipamento para elas”, escrevem.
Na madrugada desta quinta-feira, um exemplo da violência em Alepo. Um helicóptero terá bombardeado a zona rebelde da cidade com barris de gás de cloro, segundo alertaram insurgentes e funcionários médicos, publicando imagens de crianças e adultos com máscaras de oxigénio em hospitais improvisados. Quatro pessoas morreram sufocadas e dezenas ficaram feridas neste ataque, o segundo em que há alegações de uso de cloro pelo regime em menos de duas semanas. “Há muitos indícios de que realmente ocorreu”, disse Staffan de Mistura, habitualmente silencioso nestes casos. “Se realmente aconteceu, é um crime de guerra”, afirmou.
A carta dos 25 médicos sírios a Obama parecia quase retratar o ataque da madrugada. “Não precisamos de lhe dizer que os ataques sistemáticos do regime e dos aviões russos a hospitais é um crime de guerra. Não precisamos de lhe dizer que estão a cometer atrocidades em Alepo”, afirmam. “Há duas semanas, quatro recém-nascidos com dificuldades em respirar sufocaram nas suas incubadoras depois de uma bomba lhes ter cortado o oxigénio. Ofegantes, as suas vidas acabaram antes mesmo de terem começado.”