Legados coloniais e racistas, no plural
Um livro acerca da memória e do legado colonial português, nas ex-colónias portuguesas em África. Baseado em cerca de cem entrevistas, Joana Gorjão cartografou ideias e imagens acerca do passado colonial e do presente pós-independência suficientemente diversas e múltiplas.
Este livro é o resultado de cinco reportagens nas ex-colónias portuguesas em África: Angola, Guiné-Bissau, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe e Moçambique. Foram entrevistadas cerca de cem pessoas, tendo por objectivo principal saber se o colonialismo português foi ou não um regime racista. Procurou-se, também, saber até que ponto se assistiu à sobrevivência e à instrumentalização política e social de gramáticas racistas em contextos pós-coloniais. Ao colonialismo, nas suas diferentes configurações, acrescentou-se, ainda, uma referência ao envolvimento dos portugueses no tráfico de escravos, com a sua lenta abolição ao longo do século XIX, mas que em muitos dos casos perdurou sob outras formas até às independências (p. 169). É que o comércio de escravos supunha, também, a existência de uma “superioridade branca consciente”, baseada “no sentimento de que a escravização dos negros era legítima” (p. 46, citação de Wheeler e Pélissier, História de Angola, Tinta da China).
A questão central colocada por este livro, que pretende ser de jornalismo de investigação, nasceu de uma mais do que legítima inquietação pessoal da autora. Qual o sentido a atribuir à proliferação de imagens que remontam aos tempos de escola da autora? Que valor deve ser atribuído às ideias, a que a autora foi exposta, desde muito cedo, segundo as quais os portugueses tinham sido bons colonizadores, capazes de se misturar ou de miscigenar com as populações, avessos às práticas de violência, nunca alimentaram nenhum tipo de apartheid em Angola e Moçambique, constituindo um povo integrador, alheio ou imune às diferentes formas de racismo?
No fundo, todas essas ideias e imagens, aprendidas na escola em tempos posteriores a 1974-1975, reportam à eficaz propaganda colonial do Estado Novo, que, neste caso, foi apreendida de modo pouco crítico até por sectores oposicionistas. E o mais inquietante, segundo a autora, é que todas essas imagens de um colonialismo excepcional, porque suave ou benévolo, contrastam com a proliferação de situações de discriminação racial – no fundo um dos grandes legados da herança colonial.
Foi essa inquietação, tornada explícita desde o início do livro, que levou Joana Gorjão Henriques a empreender um inquérito, que pode ser visto como uma tentativa de retorno à tradição das grandes reportagens, numa época de incertezas quanto ao futuro dos jornais e da imprensa. A este respeito, Ryszard Kapuscinski foi o jornalista que mais influenciou as novas gerações. A qualidade literária dos seus textos e a sua capacidade para criar uma autêntica polifonia de vozes são atributos merecidos, tão grandes quanto as duras acusações que pesam sobre ele. Que inventou, torceu a verdade e nem sempre esteve lá, mau grado os seus dotes para produzir um efeito de realidade.
Também ele pôs em causa essa “perspectiva de brandura de olhar sobre nós próprios, portugueses” (p. 15), para utilizar a formulação de Joana Gorjão. Claro que o fez recorrendo à voz racista e reaccionária dos colonos que, em Luanda, no ano da independência de Angola, se preparavam para regressar a Portugal: “A culpa de tudo era da revolução, atiravam eles, porque antes estava tudo em paz. Agora, o governo prometera a liberdade aos pretos e os pretos tinham-se desavindo entre si, queimando e matando. Não são capazes de se governarem. Deixe-me dizer-lhe como é o preto, atiravam eles: embebeda-se e dorme o dia inteiro. Se puder enfeitar-se com umas missangas, fica todo contente. Trabalhar? Ninguém trabalha aqui” (Mais um dia de vida: Angola 1975, pref. de Pedro Rosa Mendes, Tinta da China, p. 28).
Porém, as reportagens de Mestre Kapu surgiram quase sempre associadas a cenários de guerra, conflitualidade intensa ou revolta. Enquanto Joana Gorjão optou por querer saber qual o legado colonial em países que vivem, hoje, situações de relativa estabilidade. Tal como o jornalista polaco se mostrou atento às diferenças entre Luanda e Benguela quanto às relações entre bairros ricos e bairros pobres (idem, pp. 42-43, 72-73), também Joana Gorjão teve a “preocupação de mostrar que o colonialismo foi diferente em cada país” (pp. 13, 94). Procedeu do mesmo modo com o intuito de revelar a diversidade de memórias contemporâneas.
Ao retomar o projecto das grande reportagens, este livro insere-se, também, numa linha de outros trabalhos de fôlego da autoria de jornalistas portugueses, que foram objecto de duas compilações importantes por José Manuel Barata Feio, coordenação, Grandes Reportagens, 5 vols. (Amigos do Livro, 1985) e José Vegar, coordenação, Reportagem: uma antologia (Assírio & Alvim, 2001). Será, aliás, mais importante perceber esse mesmo contexto constituído pelo trabalho de jornalistas profissionais do que aceitar como válida a vénia que a autora entendeu fazer a uma suposta profundidade dos académicos (p. 12). Isto porque o que se afigura mais cativante neste livro é o modo como, a partir de um discurso de jornalista, se rompe com o ranço de um discurso de autoridade que alguns académicos sustentam na defesa de um neo-lusotropicalismo de pacotilha, coberto com um manto de hibridismos e relativismos pós-modernos, ou mascarado por operações várias de despolitização e instrumentalização estratégica da história. Neste último caso, a culturalização de uma suposta identidade estratégica do país, para lá de patética do ponto de vista científico, não passa de uma reapresentação do “argumentário” lusotropicalista. Trata-se, aliás, de uma tendência bem reveladora do modo como estes processos de aparentemente despolitização abundam no espaço académico.
Por exemplo, com as suas ideias de “interculturalidade”, Roberto Carneiro, coordenador do Observatório da Imigração do Alto Comissariado para a Imigração e Minorias Étnicas e professor da Universidade Católica, foi quem mais recentemente se entusiasmou com a “natureza sublime e recíproca” (?) dos “processos de miscigenação cultural”, proclamando que “a memória dos portugueses é inequivocamente intercultural”. Tudo isto, a bem de uma concepção da cultura tão “comunicante”, na opinião de dois dos seguidores da sua Escola da Interculturalidade, que acaba por ser “visível no caso da escravatura que foi preferencialmente vista como um momento fracturante na História, mas da qual resultaram sociedades interculturais, tidas como profundamente ricas” (Roberto Carneiro, Nota do Coordenador e J. P. Oliveira e Costa e T. Lacerda, Interculturalidade na Expansão Portuguesa, ACIME, 2007, pp. 8 e 142). Ou seja, escravatura e colonialismo levaram à formação de sociedades muito ricas, porque miscigenadas e interculturais (?). É uma conclusão que lembra o que escreveu, a respeito de Cabo Verde, o médico interessado na antropologia física Mendes Correia, antigo director da Escola Colonial: “Não é aqui o lugar para examinar, na sua complexidade, o problema tão debatido do mestiçamento. Há um facto, porém, que desde já podemos proclamar perante a população cabo-verdiana: a vitalidade orgânica, a estabilidade e a caracterização variada dos mestiçamentos” (Ultramar português, vol. II, 1954, p. 145). Os advogados da interculturalidade, alguns hoje defensores de ideias pós-modernizadas, abundam, recuperando abstracções que têm uma história antiga, associada em larga medida com políticas do espírito e místicas imperiais.
As entrevistas feitas a angolanos, na sua maioria membros da elite (universitários, historiadores, sociólogos, publicitários, jornalistas, coronéis, dirigentes de ONGs, uma bailarina, etc.), sublinham que a herança colonial portuguesa é a da discriminação racista. Aos mais diversos níveis, entre os musseques e o casco urbano de Luanda fazia-se e ainda hoje se sente essa mesma discriminação, à qual se sobrepõe uma outra determinada pelos níveis de riqueza ou pobreza. Mais: a herança colonial, que não deixou grandes escolas, não poderá ser considerada excepcional, e as categorizações praticadas pela administração colonial acentuaram a exclusão. “Esses são indígenas, aqueles assimilados”, conforme o depoimento de Patrício Betsikama da Universidade Agostinho Neto, recolhido por Joana Gorjão (p. 37). Segundo o mesmo entrevistado, as teorias lusotropicalistas de Giberto Freyre só penetraram mais no Sul de Angola (id.).
Outro entrevistado, Sérgio Dundão, retoma a teoria fixada, na década de 1960, por Mário António: há uma primeira fase do fim da Monarquia que permitiu a participação de mestiços e negros na construção da angolanidade, enquanto a partir da República, com Norton de Matos, e, depois, durante o Estado Novo, se assistiu à formação de um regime colonial mais rígido e racista (p. 45). Esta mesma visão, cujas raízes estão na obra do referido Mário António, um intelectual angolano cooptado pelo Estado Novo, mas respeitado por muitos dos seus opositores, foi em parte reproduzida pela História de Angola de Pélissier e Wheeler, quando apontam a lei da segregação da administração pública de 1921 e o estatuto do indígena de 1929, pois ambos os diplomas se inserem na criação de uma política de discriminação racial (pp. 46-47).
A uma certa unanimidade, pelo menos do ponto de vista dos entrevistados, em relação a uma herança colonial racista, seguem-se algumas páginas relativas à “utilização política da raça” no período posterior à independência de Angola. No MPLA, os opositores de Nito Alves, responsável pelo golpe de 27 de Maio de 1977, acusaram-no de racismo dos negros contra os brancos e mestiços (p. 39). Enquanto o MPLA, na opinião de uma das suas defensoras, Lúcia da Silveira, evitou a discriminação racial e o tribalismo (p. 41). Os seus pais tiveram de fugir de Malanje quando Savimbi, líder da UNITA, perseguiu até à morte os mestiços.
O mesmo método das entrevistas e de selecção de entrevistados, que fazem parte de uma elite alargada, é aplicado à Guiné-Bissau. Fodé Mané, um antropólogo e arquivista, guarda ainda as guias de marcha da mãe, que lhe permitiam uma estadia de alguns dias na cidade de Bissau, caso as não tivesse, estava-lhe pura e simplesmente vedado o acesso à cidade (p. 63). O estatuto do indigenato foi abolido em 1961. As suas causas e consequências ainda estão por estudar com rigor, tendo passado por várias reformas e por vários códigos do indigenato, no tempo e no espaço, segundo os vários territórios coloniais. A sua cronologia não é simples de estabelecer (mas de modo nenhum fica resolvida pela mera substituição ou antecipação das datas da sua aplicação a Angola e Moçambique em 1929), tendo os seus efeitos continuado até à independência. Mesmo hoje, não é difícil “imaginar (...) um posto de controlo” à entrada da cidade de Bissau (p. 64). Também não é impossível perceber que, para além das formalidades legais e de abolição da escravatura, permaneceram até muito tarde as formas de escravização e de trabalho forçado, justificadas a bem da realização de trabalhos de obras públicas, tais como estradas (p. 70).
Da mesma forma que em Angola, mas com uma configuração que é diferente, na Guiné, o legado colonial, concretizado na divisão étnica e na diferenciação racial, continua a fazer-se sentir, nos dias de hoje (p. 71). A presença de cabo-verdianos em posições de chefia – nomeadamente como chefes de posto que representavam o Estado colonial e que tinham a responsabilidade de organizar o trabalho compelido – deixou um lastro de tensões raciais que perduram até hoje (p. 75). Mas há, também, quem pense que, apesar do colonialismo português não ter sido suave nas suas discriminações raciais, não se pode continuar a esperar “algum paternalismo” e ajudas de Portugal: “o melhor que podemos fazer é dar os passos necessários, fazer aquilo que é da nossa responsabilidade” (p. 81). Outras vozes sugerem que a colaboração das etnias fula e manjaco com o Estado colonial, nomeadamente com Spínola, enquanto os balanta alinharam com o PAIGC, conduziu a divisões e acusações daqueles como “traidores da pátria”, nos tempos posteriores à independência (p. 91).
Claro que a situação de Cabo Verde foi diferente, em tempos coloniais e no pós-independência. Jorge Andrade explica: trata-se da terra por excelência da mestiçagem, mas esta não pode deixar de ser identificada como resultado da violação sexual, logo, da violência (p. 107). Já em 1947, os cabo-verdianos gozavam de um estatuto de cidadania que não se confundia com o dos indígenas (p. 109). Era, aliás, este mesmo estatuto que lhes dava acesso à administração colonial, nomeadamente na Guiné-Bissau. Mas, hoje, é esse mesmo hibridismo que leva ao esquecimento do que é africano, em benefício dos valores e das modas do Ocidente (p. 110).
Há, porém, vozes discordantes da imagem anterior que, ao sublinhar a mestiçagem, parece dar razão a uma realidade colonial modelada pelo lusotropicalismo. O historiador Correia da Silva, por exemplo, sustenta que “o racismo é uma ideologia oficial portuguesa e a mestiçagem foi combatida como política do Estado” (p. 111). Também há diferenças entre as ilhas: em Santiago a população afigura-se mais próxima de África, enquanto nas ilhas do Barlavento haverá uma maior proximidade com a Europa, pois a população é mais intelectual e culta (p. 113). Por sua vez, a directora da Orquestra Nacional de Cabo Verde defende que “conscientemente, os cabo-verdianos rejeitam a Europa, e inconscientemente rejeitam a África” (p. 130). Porém, a acreditar no depoimento do sociólogo cabo-verdiano Avelino Carvalho, mau grado a violência do sistema colonial, este não pesou e assistiu-se ao desenvolvimento de relações raciais que “não são vincadas pela raça” (p. 119).
Kwame de Sousa, artista plástico de S. Tomé, quando entrevistado, não teve dúvidas em argumentar: “Não sei se existe racismo (...). Dizer ao povo ‘tu foste escravo’ não vai ajudar o meu país. Sou a primeira pessoa a apagar na mente do meu povo e a dizer: ‘Esquece essa merda, anda para a frente’. Estar a remontar a merda da escravatura não ajuda a nada” (p. 149). É este mesmo corte com o passado colonial que a conhecida professora da Faculdade de Letras de Lisboa, Inocência Mata, são-tomense, explica: 64% da população tem até 24 anos. É por isso normal que as marcas do colonialismo não estejam presentes no quotidiano. Porém, quando se trata de definir o colonialismo, não hesita: “O colonialismo não é um encontro de culturas, o colonialismo estabelece uma relação de poder de uma cultura sobre a outra” (p. 151). Assim se explica o massacre de Batepá, em 1953, quando às ordens do coronel Gorgulho foram mortos cerca de mil são-tomenses que se recusaram a trabalhar nas roças (p. 154). O mesmo se diga das roças que, segundo um dos entrevistados, eram “campos de concentração nalgumas situações” (p. 159). Com todos estes factos na memória, Eduardo Malé, artista plástico e professor de liceu, não tem papas na língua em relação ao presente pós-colonial – uma das suas obras já foi censurada, por aludir à corrupção em S. Tomé e Príncipe (pp. 163-164)... Este livro não consagra, assim, qualquer operação de desculpabilização histórica por parte das “elites” pós-coloniais, ao contrário do que leituras apressadas podem sugerir.
Que dizer, então, da família Quelhas de origem goesa que Joana Gorjão entrevistou em Maputo? “Da geração mais velha à mais nova, em casa da família Quelhas a percepção é de que no país houve e há uma harmonia racial” (p. 175). Também Fernando Lima, director do semanário Savana declara: “‘Somos muito melhores do que a generalidade dos países africanos’ em termos de relações raciais” (p. 180). Mas não aceita a ideia de que o colonialismo português foi brando. Também o antigo presidente Chissano, nas suas memórias, parece recuperar o velho argumento de Marvin Harris acerca de Moçambique, quando afirmava que apesar de não existir um apartheid legal: “tudo estava bem separado” (p. 183). Hoje, segundo o mesmo ex-presidente: “não há um problema racial em Moçambique” (p. 185). Percepção oposta tem Inês Raimundo, professora da Universidade Mondlane, quando fala “daquilo que considera ser a permanência de um apartheid em Moçambique, em que as raças vivem misturadas e pouco se misturam, mesmo agora” (p. 186).
Em conclusão, este é um livro acerca da memória e do legado colonial português, nas ex-colónias portuguesas em África. Baseado em cerca de cem entrevistas, Joana Gorjão cartografou ideias e imagens acerca do passado colonial e do presente pós-independência suficientemente diversas e múltiplas. Através delas será possível reconstituir uma pluralidade de vozes, em boa medida determinadas por configurações diferentes, consoante os cinco territórios que tratou. Trata-se de vozes de uma elite alargada, de profissionais com títulos e competências bem identificados, à boa maneira dos jornalistas de grandes reportagens. Acusá-la de uma visão parcial – por enfatizar unilateralmente o legado racista dos portugueses, ficando-se pelo testemunho das elites, opondo-lhe a pseudo-autoridade de meia dúzia de académicos ou activistas políticos de bandeira facciosa (provenientes de uma elite ainda mais restrita!) – parece-me um erro crasso. Um exercício gratuito e fácil, próprio dos lambe-botas do saudosismo, com queda para as interculturalidades, que por aí pululam.
Joana Gorjão não terá, pelo menos por ora, o domínio da escrita de um Kapuscinski. É que importa não perder o rumo imposto pelas grandes reportagens jornalísticas que se constituíram em peças de literatura com García Márquez e Vargas Llosa. Não que me comova os artifícios de estilo, mas porque a passagem de um conjunto de reportagens a livro deveria ter obrigado a um trabalho de revisão e reescrita, que Joana Gorjão não empreendeu. Sem cedências ao famigerado discurso académico, tantas vezes enredado em falsas questões conceptuais ou de estilo e pouco orientado para a análise do real, haverá igualmente que fazer um trabalho de actualização da bibliografia que o “Guia de leitura” do fim do livro se apressa simplesmente a despachar. Dito isto, trata-se de um primeiro livro de uma jornalista promissora. Estou certo que, um dia, se lhe continuarem a dar condições para realizar as suas grandes reportagens, Joana Gorjão poderá chegar mais longe.