Viagens ao Euro: Podem os secretários de Estado ter cometido um crime?
PSD quer explicações, CDS demissão. E a Galp diz que é um processo normal e transparente. Jorge Miranda fala na questão ética, Negrão na questão criminal.
Fernando Rocha Andrade, secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, e João Vasconcelos, secretário de Estado da Indústria, viajaram para França a convite da Galp para verem jogos da selecção no Euro. E sabe-se agora que Jorge Costa Oliveira, secretário de Estado da Internacionalização, também o fez. O CDS pediu de imediato a demissão do secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, Rocha Andrade, enquanto o PSD foi mais cauteloso e quer, para já, explicações sobre o que aconteceu. Mas o que está em causa?
De acordo com a lei dos Crimes de Responsabilidade dos Titulares de Cargos Políticos, os altos titulares de cargos políticos estão proibidos de “recebimento indevido de vantagem”. De acordo com a mesma legislação, “o titular de cargo político ou de alto cargo público que, no exercício das suas funções ou por causa delas, por si, ou por interposta pessoa, com o seu consentimento ou ratificação, solicitar ou aceitar, para si ou para terceiro, vantagem patrimonial ou não patrimonial, que não lhe seja devida, é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos”, lê-se na lei que rege este tipo de actuação.
Contudo, a mesma legislação exclui “as condutas socialmente adequadas e conformes aos usos e costumes”. A questão que se coloca é se, na interpretação da lei, este tipo de viagem oferecida pela empresa petrolífera configura ou não uma “conduta socialmente adequada”, logo, excepcionada pela lei.
Para já, o PSD levanta essa questão um texto com cinco perguntas ao Governo sobre o caso. Mas os sociais-democratas, oficialmente, não vão mais longe. O deputado social-democrata Leitão Amaro disse apenas que queria respostas antes de o partido tomar uma posição mais firme. “É fundamental esclarecer esta situação. Saber se é verdade que o secretário de Estado dos Assuntos Fiscais recebeu ofertas de viagens e de deslocação de uma grande empresa que tem pelo menos um litígio fiscal pendente de muitos milhões de euros com o Estado, em particular com um serviço que depende da tutela do próprio secretário de Estado”, diz à Lusa.
Mas o ex-ministro da Justiça do PSD Fernando Negrão foi mais longe no seu comentário ao caso. Negrão disse esta quarta-feira na SIC Notícias que a prática de Rocha Andrade [ainda não era conhecido o caso de João Vasconcelos] “podia configurar um crime”. E foi mais longe, deixou no ar a ideia de que a Procuradoria-Geral da República poderia abrir um inquérito para averiguar o caso: “Dos dados que tenho, diria que a PGR, com certeza, abrirá um inquérito", comentou. Questionada pelo PÚBLICO sobre o caso, a PGR diz que está a recolher elementos.
Além da questão criminal, o constitucionalista Jorge Miranda levanta o problema ético. “É inadmissível. É uma falta de ética espantosa, [Fernando Rocha Andrade] devia demitir-se”, disse Jorge Miranda à agência Lusa. Para o constitucionalista, “é espantoso que ao fim de 40 anos de democracia ainda exista um caso destes”, acrescenta.
Do lado do CDS, o líder da bancada, Nuno Magalhães, reiterou esta quinta-feira, em conferência de imprensa, que o secretário de Estado dos Assuntos Fiscais Fernando Rocha Andrade “não tem condições políticas” para continuar em funções. “É normal que a empresa faça o convite, não é normal que seja aceite”, afirmou o centrista no Parlamento. O CDS coloca a questão das viagens pagas pela Galp a Rocha Andrade no plano político e ético, mas não na perspectiva criminal. Está em causa “uma empresa que se recusa a pagar uma contribuição ao Estado de 100 milhões de euros”, sublinha Nuno Magalhães.
“A questão não é jurídica, é política. Não há condições para um secretário de Estado que tutela uma empresa” aceite aquele tipo de convite, reafirmou o centrista depois de o vice-presidente da bancada Telmo Correia já ter pedido a demissão do governante. “Do ponto de vista da transparência, acho que o secretário de Estado não tem condições para continuar, a quem cabe decidir é o primeiro-ministro”, assumiu Nuno Magalhães em resposta aos jornalistas. O líder da bancada criticou ainda o “silêncio ensurdecedor” do PCP e do BE sobre esta polémica.
Pouco tempo depois, o PCP reagiu a este tema e considerou que Rocha Andrade teve uma "atitude criticável". Jorge Pires, da Comissão Política do Comité Central do PCP, recusou, no entanto, pedir a demissão do secretário de Estado, afirmando que o governante e o resto do executivo "devem fazer a leitura política, tirar ilações e decidir o que fazer nesta situação".
Polémica com três secretários de Estado
Além de Rocha Andrade, também o secretário de Estado da Indústria, João Vasconcelos, viajou a convite da Galp, tal como o PÚBLICO avançou. Vasconcelos foi ver a final do Euro a Paris e, através do seu gabinete, disse ao PÚBLICO que “pagou um bilhete de avião” e que pediu “à Galp que esclareça se há despesas adicionais que, a existirem, serão devidamente reembolsadas”.
Os dois casos não diferem na aceitação do convite, diferem no facto de Vasconcelos ser o titular da pasta que tem alguma tutela sobre a Galp e no facto de na sua tutela não haver contenciosos judiciais com a empresa. Foi sobretudo esta segunda parte que provocou a polémica em torno de Rocha Andrade.
A Galp tem vários diferendos com o Estado, incluindo um contencioso em tribunal, por se recusar a pagar impostos que ultrapassam cem milhões de euros e é a Autoridade Tributária, sob tutela do governante, que representa o Estado nesse litígio. Uma questão que, para Rocha Andrade, também não configura um problema, uma vez que, “tratando-se de processos em contencioso, as decisões concretas sobre os processos judiciais em causa não competem ao Governo, mas sim aos tribunais”, respondeu à revista Sábado.
Já esta quinta-feira, o Expresso avançou que também o secretário de Estado da Internacionalização, Jorge Costa Oliveira, fez parte da comitiva que foi ver o jogo Portugal-Hungria a Lyon, a convite da Galp.
Para já, do lado do Governo não houve reacções. Com António Costa de férias, é Augusto Santos Silva quem tem as rédeas do executivo, mas até ao momento recusou comentar o caso, mesmo quando instado pelo PÚBLICO. E o gabinete do primeiro-ministro disse à Lusa que não haverá comentários, remetendo para as declarações de Rocha Andrade, que considerou que não há conflito de interesses.
Galp diz que é “comum”
Perante a polémica instalada, a Galp já veio a público responder às críticas. Em resposta aos jornalistas, a empresa diz que “este tipo de iniciativas é comum e considerado aceitável no plano ético das práticas empresariais internacionais” e que é uma prática que segue há vários anos.
Na mesma resposta, a petrolífera diz que os convidados “viajam em conjunto de forma aberta e transparente, num voo charter de acesso generalizado, sem qualquer segredo ou tratamento diferenciado, partindo e regressando no próprio dia do jogo”.
A Galp recusa comentar casos individuais, como o do secretário de Estado Rocha Andrade, e lembra que a empresa patrocina a selecção nacional de futebol desde 1999.