Margot Dias: Viver até ao fim entre os macondes
Pianista de formação, Margot Schmidt nasceu na Alemanha e passou a Margot Dias quando se casou com um antropólogo português que era “um charme”. Juntos estudaram o povo maconde quando Moçambique era ainda uma colónia. Nova edição mostra os filmes “extraordinários” que fez e põe-nos a olhar para ela.
Margot Schmidt e António Jorge Dias conheceram-se num concerto no começo da guerra, em 1940. O antropólogo português, formado em Filologia Germânica, era o leitor de Cultura Portuguesa na cidade de Rostock e ela estava a terminar o curso de mestres de piano. No ano seguinte estavam casados. Trocaram a Alemanha por Portugal antes de a Segunda Guerra acabar, viajando num dos últimos aviões que saíram de Berlim, contou ela ao PÚBLICO em Maio de 1990, numa entrevista em que lembrava como tinham perdido todos os livros e as partituras num incêndio no aeroporto, e como tivera de esperar um ano para que o seu Steinway fosse recuperado na fronteira franco-espanhola.
Margot Dias (1908-2001) deu o seu último concerto em 1956, passando a dedicar-se a tempo inteiro à antropologia, um interesse que lhe vinha da juventude e que começara a impor-se na sua vida profissional em 1947. Foi precisamente a antropologia – sobretudo o grande trabalho que Margot e António Jorge Dias realizaram com Manuel Viegas Guerreiro entre os macondes de Moçambique e o Museu Nacional de Etnologia (MNE) – que a moveu até ao fim.
“Acho que a Margot nunca saiu por completo do universo maconde, porque sentia por ele um encantamento permanente”, diz Joaquim Pais de Brito, que dirigiu o museu que a antropóloga ajudou a criar durante 20 anos e que com ela conversou longamente na preparação do guia para os filmes realizados por Margot Dias em Moçambique em 1958-1961, editado em 1997 pelo MNE e coordenado pela cineasta e também antropóloga Catarina Alves Costa.
É precisamente este guia, revisto e aumentado, que agora acompanha a edição em DVD dos cerca de 30 filmes africanos que Margot Dias (1908-2001) fez entre 1958 e 1961 – aos de Moçambique, a esmagadora maioria, juntam-se os de Angola, todos organizados em quatro núcleos temáticos – que a Cinemateca Portuguesa e o Museu de Etnologia se preparam para lançar até ao fim do ano, inaugurando uma colecção de títulos etnográficos.
Com uma duração de mais de quatro horas, os filmes, originalmente mudos, foram agora sonorizados por Alves Costa e Pedro Duarte, recorrendo às gravações de som feitas no terreno pela antropóloga de origem alemã e às suas detalhadas notas de campo, explica Tiago Baptista, conservador da Cinemateca.
É também Alves Costa a autora de um dos textos do livro de 80 páginas que acompanha esta edição bilingue (português/inglês) – os antropólogos Nuno Domingos e Harry West, José Manuel Costa, director da Cinemateca, e Paulo Costa, hoje à frente do museu, assinam os outros – e que atesta a importância destes filmes para os estudos etnológicos e antropológicos em Portugal, contextualizando o trabalho de investigação em que se inserem, o da Missão de Estudos das Minorias Étnicas do Ultramar Português, tantas vezes alvo de polémica.
A edição dos filmes de Margot Dias é, sobretudo, uma grande oportunidade para chamar a atenção para o trabalho desta mulher que tem ficado injustamente na sombra do seu marido, algo muito comum entre os casais de antropólogos que começaram a trabalhar na primeira metade do século XX, diz João Leal, do Centro em Rede de Investigação em Antropologia, comparando-os aos britânicos Victor e Edith Turner.
Tal como os antropólogos Pais de Brito, Paulo Costa, Rui M. Pereira e Catarina Alves Costa, com quem o Ípsilon conversou, João Leal quer ver Margot (é com uma certa familiaridade que a ela se referem quase sempre) ocupar o lugar que merece na antropologia portuguesa, quer que lhe sejam reconhecidos o rigor e a dedicação que imprimiu a tudo o que fez.
Como um blocos de notas
O trabalho que Margot faz com Jorge Dias e Manuel Viegas Guerreiro entre o povo maconde que vivia num planalto do Norte de Moçambique, na fronteira com a actual Tanzânia, nasceu de um convite que Adriano Moreira fez em 1956 ao académico português que leccionara na Alemanha e que contava já com uma certa projecção internacional. Esse convite do então director do Centro de Estudos Políticos e Sociais da Junta de Investigações do Ultramar, daria origem a uma monografia em quatro volumes, Os Macondes de Moçambique (1964/65), obra de referência nos estudos antropológicos em Portugal. E a um riquíssimo arquivo que inclui centenas de fotografias, milhares de fichas e os filmes que até ao fim do ano passarão a estar à disposição de todos.
“Em 1957, a primeira vez que fomos, só tínhamos uma máquina fotográfica Leica e uma Retina (nossa)”, contou Margot Dias a Catarina Alves Costa e a Joaquim Pais de Brito durante as conversas que antecederam a publicação do guia de 1997. “Eu achava muito importante ter uma máquina de filmar. Mas mesmo com o António era uma luta muito grande, ele achava que isso era uma ‘coisa dos outros países’. Mas no segundo ano conseguimos um aparelho de filme e deram-nos o dinheiro para filmar. Era a última oportunidade.”
Margot, diz Catarina Alves Costa, via estes pequenos filmes como páginas de um bloco de notas a que mais tarde poderia recorrer quando estivesse – quando estivessem – a escrever a monografia. “Era quase como se estes filmes não valessem por si mesmos”, explica a antropóloga e cineasta. Margot via-os como um meio, um instrumento. “Este é material para ser consultado por investigadores e principalmente para ficar na posse dos moçambicanos, faz parte da história deles”, dizia.
Por isso mesmo a antropóloga teria gostado de saber que o então Presidente Jorge Sampaio ofereceu a Moçambique uma cópia dos seus filmes e que Pais de Brito, 45 anos depois dos trabalhos de campo, foi ao planalto maconde mostrá-los e ficou muito surpreendido por ali ter encontrado pessoas que ainda se tinham cruzado com a equipa e que dela guardavam memórias. Com representantes do Museu Nacional de Etnologia de Moçambique, em Nampula, o antropólogo andou de aldeia em aldeia em sessões improvisadas, com recurso a geradores e pequenas televisões que se instalavam nos capots de jipes e carrinhas. Algumas dessas sessões de 2003 tinham 400 ou 500 pessoas a assistir, porque todo o território parecia saber que andavam por lá a exibir filmes feitos há décadas. “Lembro-me de um homem que se sentou ao meu lado e que identificou o irmão num dos filmes da Margot… De repente ouvi-o dizer: ‘O meu irmão, está ali o meu irmão. Ninguém dançava como ele…’ Era uma sessão no meio da floresta e eu achei tudo aquilo muito comovente. A Margot teria ficado encantada com aquele encontro de irmãos, tenho a certeza.”
Jorge Dias era o chefe da missão, o professor universitário, “mais distante, apesar da personalidade solar” que todos lhe reconheciam, ao passo que “Margot era a antropóloga que vivia fascinada com aquelas pessoas, com a relação que podia construir com elas”, defende o antigo director de Etnologia. “Não conheci o Jorge Dias, mas todos os que o conheceram dizem que era um charme, brilhante. Sem formação teórica, de início, Margot fica do outro lado, o das tecnologias, dos objectos, do que é imediatamente perceptível. A ela se deve, em grande parte, esta centralidade da imagem em movimento.”
Margot Dias filma os ritos de puberdade das raparigas, as danças com rapazes mascarados, acompanha os contadores de histórias e o trabalho do barro e da cestaria, assiste às sessões com o curandeiro a quem todos recorrem e aos concertos das orquestras de marimbas nos terreiros, que para ela mostram que entre os macondes a música tem uma importante função social e reflecte uma “organização bastante evoluída e sábia”.
Mesmo quando não são elas que deveriam estar em foco, boa parte dos seus filmes concentra-se nas mulheres, que a antropóloga vê como a verdadeira força de trabalho deste povo. São elas que aparecem a pilar, a plantar, a fazer potes de barro, a preparar as raparigas para uma qualquer dança ritual e, é claro, a cuidar das crianças. Num deles, na aldeia de Antupa, a antropóloga detém-se numa mulher que brinca com o filho e noutra que está a amamentar. “É claro que os filmes têm limitações técnicas, a começar pelo facto de não terem som, mas isso é o que menos importa. O que interessa é a perspectiva da realizadora, o seu olhar cuidadoso”, diz Catarina Alves Costa.
Pais de Brito atribui este olhar cuidadoso à sua “sensibilidade muito emotiva”, que convivia bem com uma intensa racionalidade: “Era, por exemplo, muito rigorosa com as palavras – era capaz de dar voltas e voltas à procura das palavras certas para caracterizar uma situação ou a relação entre duas pessoas.” Passadas décadas, lembra, Margot ainda escrevia aos seus contactos no planalto maconde para saber o que tinha acontecido a esta ou àquela pessoa e para pedir informações para os seus escritos.
“A Margot não chegou a acabar o quinto volume d’Os Macondes e mesmo que o tivesse acabado nunca o publicaria”, diz Pais de Brito. E não o publicaria, explica, porque para ela só faria sentido fazê-lo atribuindo a autoria também a Jorge Dias, que morreu em 1973. “Ela vivia esse dilema – como publicar assinando com Jorge Dias sem saber se ele concordaria com o que estava escrito? Isso era irresolúvel para ela.”
A preocupação de rigor atravessava todo o seu trabalho, sublinha Alves Costa, dando como exemplo situações nos filmes que agora se editam em que ela faz questão de frisar que determinadas sequências, como as das cenas da vida dos rongas, tinham sido encenadas. “Margot Dias tem sempre muito presente a relação observador/observado e reflecte muito sobre a maneira como um influencia o outro e como essa relação se transfere para o próprio conhecimento, como ela transparece.”
O professor e a assistente
Antes das viagens a África, e sempre com Margot, Jorge Dias fizera já dez anos de trabalho de campo em Portugal dos quais resultariam outras duas monografias seminais, a de Vilarinho da Furna e a de Rio de Onor, duas aldeias com uma vida comunitária muito forte. O académico dirigia também, e desde 1947, o Centro de Estudos de Etnologia Peninsular, no Porto, coordenando uma equipa que em pouco tempo revolucionaria a etnografia portuguesa e de que faziam parte Ernesto Veiga de Oliveira, Benjamim Pereira e Fernando Galhano.
É numa entrevista que João Leal lhe faz em 1996 que Benjamim Pereira (n.1928) lembra os laços de profunda amizade que uniam o grupo de Jorge Dias e o papel de Margot. Dias, Galhano e Veiga de Oliveira eram “como irmãos”, contou o antropólogo no decorrer dessa conversa. “Depois o Jorge Dias vai para a Alemanha e conhece a Margot. O Jorge Dias escreve ao Ernesto e fala justamente de um grupo lá na floresta, que andavam nus, e uma delas é uma pianista que é a Margot, com quem o Jorge Dias depois estabelece uma relação e acabará por se casar. Quando a Margot vem, o Jorge Dias inclui a Margot no grupo inicial.”
No textos da equipa a co-assinatura é prática comum. Os Macondes de Moçambique, que não é excepção, é escrito ocupando-se o líder da missão do campo da história, da economia, da religião e da organização política; Viegas Guerreiro da língua e da tradição oral; e Margot da cultura material e dos rituais de puberdade e parentesco.
Mas, quando se tratava de um artigo assinado pelos dois, Margot Dias fazia sempre questão de falar primeiro “do António”, garante Catarina Alves Costa: “O rosto dela parecia ganhar outra expressão quando se referia ao Jorge Dias. O trabalho que muitos poderiam considerar feito ou deixado ‘na sombra’ era uma coisa natural para ela, não a incomodava.” No campo profissional, acrescenta Rui M. Pereira, professor de Antropologia da Universidade Nova de Lisboa, a sua relação com o líder da equipa foi sempre semelhante à que se estabelece entre um professor e a sua assistente.
A missão e a polémica
A equipa vai pela primeira vez a Moçambique em 1956, um ano depois da Conferência de Bandung, que condenou formalmente o colonialismo e mostrou, sem sombra para dúvidas, que havia um processo independentista em curso na África ocupada há séculos pelas grandes potências europeias.
O convite de Adriano Moreira que levou a equipa ao planalto maconde não estava isento de intenções políticas, muito pelo contrário, mas isso não chega para desmerecer do trabalho científico que ali foi feito nem ceder às interpretações que olham para estes antropólogos como meros instrumentos da administração colonial, defende João Leal. Para estre professor da Nova, é fundamental separar o registo da monografia publicada em meados de 1960 do dos relatórios que viriam a receber a classificação “confidencial”, entregues ao director do Centro de Estudos Políticos e Sociais da Junta de Investigações do Ultramar no final de cada campanha.
“É claro que não se pode analisar o trabalho deles esquecendo que faz parte da estratégia de Adriano Moreira que passava pela chamada 'ocupação científica' das colónias, em que a antropologia aparece ao serviço da política e da ordem ultramarinas, mas também não se pode enviesar tudo. Os relatórios chegam a ser muito críticos em relação à presença portuguesa”, defende, reconhecendo que a relação de Jorge Dias e da sua equipa com o regime não é a preto e branco. “Para conseguir construir o que construiu, e isso inclui o museu e os trabalhos sobre Portugal, teve de fazer compromissos com o Estado Novo. Mas isso não quer dizer que o que ele e a sua equipa fizeram não contrarie, em termos científicos, a imagem idílica do país dada pela etnografia fiel ao governo.” A imagem que propuseram, explica, era muito mais complexa e matizada, susceptível de aproveitamentos à esquerda. “O seu país não era o das minhotas alegres. Era o da vida comunitária de Vilarinho da Furna e de Rio de Onor, que tanto agradava aos comunistas”, ainda que a sua visão destas comunidades fosse, na opinião de Pais de Brito, que décadas mais tarde estudou a aldeia do concelho de Bragança, “muito romantizada”.
Para Rui M. Pereira, que em 1999 foi responsável por uma reedição de um dos volumes da monografia Os Macondes de Moçambique (estavam preparados mais dois que nunca chegaram a sair), é muito natural que a Missão de Estudos das Minorias Étnicas do Ultramar Português seja terreno fértil para polémicas, como ficou provado no ano passado quando a artista plástica Ângela Ferreira ganhou o prémio Novo Banco Photo com A Tendency to Forget, trabalho que recorre a imagens dos filmes de Margot, reacendendo o debate sobre a ligação de Jorge Dias ao regime e sobre a conivência entre a academia e o Estado Novo nas décadas de 50 e 60.
“Nunca é por de mais fazer a denúncia do colonialismo, até porque ele se mantém em atitudes e mentalidades, mas as coisas têm de ser contextualizadas. A obra da Ângela Ferreira é muito importante, porque leva estas questões a uma audiência mais vasta, mas falta-lhe abordar as condições objectivas em que a equipa trabalhou.” É claro que havia cooperação entre a equipa e o regime, defende o investigador, mas isso não invalida que tenha feito uma monografia em que “estuda o povo pelo povo” e “bem situada internacionalmente”. “A monografia foi feita como se os macondes vivessem fora do tempo, fora do sistema colonial”, ao passo que os relatórios da missão assumem que os macondes vivem períodos conturbados, num território politicamente instável e sujeito a influências exteriores. “De Tanganica [actual Tanzânia] eles não traziam só rádios-transístores e bicicletas, traziam ideias. E ideias independentistas.”
Lembra ainda Rui M. Pereira que naquela região de Moçambique a colonização portuguesa dos anos 1950 era particularmente dura, crua. Nas grandes explorações de algodão havia castigos físicos violentos e não é por isso de estranhar que tenha sido ali que começou a revolta. Uma revolta que, em Junho de 1960, tem no Massacre de Mueda, principal posto da administração colonial no Norte do país, um dos episódios mais dramáticos, com as autoridades a matarem, segundo algumas fontes, mais de 500 agricultores macondes que reclamavam melhores condições de vida. “É pouco depois de Mueda que Margot chega para mais uma campanha de campo e encontra as aldeias desertas, com as pessoas a esconderem-se.”
É assim que ela recorda o começo dos anos 1960 nas conversas com Catarina Alves Costa e Joaquim Pais de Brito, num dos seus raríssimos comentários passíveis de uma leitura política: “Tínhamos consciência, nesse ano, em 1961, de que era a última vez – que tudo ia mudar. No meu diário de campo nota-se uma tristeza muito grande, porque começa a haver desconfiança, os pretos escondiam-se no mato, tinham medo dos brancos e os brancos dos pretos.”
“Margot evitava falar destas e de outras questões políticas. Era como se tudo isto lhe fosse exterior, estranho”, diz Joaquim Pais de Brito, embora tenha chegado a dizer, naquelas conversas dos anos 1990, que “os portugueses que foram lá para a administração em geral eram incultos, nem lhes passava pela cabeça ter uma relação pessoal com os africanos”.
O ex-director de Etnologia leu e releu com muita atenção os quatro volumes da monografia, assim como os relatórios que Jorge Dias escreveu para Adriano Moreira e que tanto desconforto causaram e causam a muitos dos que procuram analisar a sua relação com o regime e com o próprio projecto colonial português. E diz que as críticas são “naturais”, quando se trata de um trabalho feito numa região de um império que tinha uma guerra à porta. “Naturais” mas “infundadas”, se insistirem em ignorar o contexto em que foi realizado e não fizerem qualquer menção ao mérito do que acabou por ser produzido. “A monografia é uma obra admirável, um registo sereno, rigoroso”, defende. “E teria sempre uma leitura política mesmo que Jorge Dias não tivesse escrito os relatórios. E é preciso dizer que ele não os escreve para se esconder ou para disfarçar. Ele é muito crítico em relação aos colonos que estão naquele território, colonos que acusa de sobranceria, boçalidade e ignorância, colonos que diz desprezarem por completo os africanos. E Margot não o esquece. ”
Mas este é o mesmo Jorge Dias que aceita dirigir uma missão científica num território altamente politizado que preocupava o Estado Novo e que, depois de várias campanhas de campo em Moçambique, continua a defender o colonialismo em conferências um pouco por todo o mundo. Contraditório? “Claro que sim”, admite o antropólogo, mas produto de uma época: “Podemos questioná-lo e até discordar de muita coisa, mas não podemos ignorar que, de outra forma, sem estabelecer alguns compromissos com o regime, este trabalho nunca teria acontecido. A monografia não tem política, mas pode sempre fazer-se uma leitura nesse sentido, porque sabemos que Jorge Dias não põe em causa a existência de um império colonial português.”
Nos relatórios, explica, o director da missão considera que acabará por acontecer no planalto maconde o que aconteceu em Tanganica, colónia britânica entre 1919 e 1961, onde já havia intensos focos de revolta.
É porque, na sua opinião, ignora o contexto do trabalho desta missão que Pais de Brito classifica como “lamentável” a apropriação que Ângela Ferreira fez dos filmes de Margot Dias, “manipulando-os com critérios do politicamente correcto”: “Os filmes da Margot foram feitos com a seriedade e o empenho de quem pegou na câmara com o olhar emotivo e cúmplice dos que partilham, porque ela era assim. Tratá-los como um mero instrumento do regime é uma visão redutora que esquece tudo o resto.”
O antropólogo espera agora que a edição que em breve será lançada abra estes registos fílmicos a outras interpretações. “Olhar para eles é olhar para nós. A partir deles podemos construir e desconstruir.”
Partilhar estes filmes é o mais justo reconhecimento que se pode fazer ao “papel importantíssimo” de Margot Dias na relação do MNE com a imagem em movimento, diz o seu actual director, Paulo Costa, acrescentando que hoje o arquivo de imagem e de som do museu tem mais de 1800 filmes e seis mil registos sonoros. Para ele contribuíram, sobretudo, a antropóloga de origem alemã, Benjamim Pereira, Ernesto Veiga de Oliveira e Michel Giacometti.
“O uso que a Margot faz do filme na pesquisa etnográfica logo em meados de 50 é absolutamente pioneiro. Os seus filmes são um tesouro extraordinário”, sublinha, chamando a atenção para o contributo que deu a toda a organização do museu – criado no papel em 1965 e inaugurado na casa que hoje tem em 1976 – e para o valor simbólico da primeira peça a dar entrada nas suas colecções: “É um pote de água maconde, daqueles que as mulheres transportavam à cabeça. Um pote que a Margot estudou. A própria organização das nossas reservas, que sempre se quiseram abertas aos investigadores e aos estudantes, como um laboratório científico, deve-lhe muito. A Margot está em tudo o que o museu é.”