Controlo de registo criminal de voluntários a trabalhar com crianças pode falhar

Provedor de Justiça recomendou que o cadastro deixe de ser pedido anualmente. Especialistas questionam eficácia deste sistema para proteger menores de abusos.

Foto
Juristas receiam que instituições com voluntários sejam “via de acesso fácil às crianças” Daniel Rocha

A hipótese de os trabalhadores com contacto regular com crianças e jovens deixarem de ser obrigados a apresentar todos os anos o registo criminal à entidade empregadora suscita reservas de profissionais da justiça ou da protecção de crianças e jovens. Se a recomendação enviada em Junho à Assembleia da República pelo provedor de Justiça, José de Faria Costa, for acolhida pelos deputados, quem trabalha com crianças poderá ficar apenas obrigado a apresentar o certificado de registo criminal no momento em que inicia funções e não todos os anos, como acontece desde 2015.

A proposta do provedor prevê que sejam as autoridades judiciárias a comunicar às entidades empregadoras decisões judiciais relevantes de trabalhadores seus. Mas deixa em aberto a forma de passar essa informação, no caso de trabalhadores do sector privado ou voluntários, para que seja definida pelos deputados.

É precisamente nas situações de pessoas que trabalham com crianças, em regime de voluntariado, que a comunicação esperada das autoridades judiciárias pode não ficar garantida, salienta Rui do Carmo, magistrado do Ministério Público em Coimbra na área criminal e de família e menores. A preocupação principal, considera o procurador, será garantir que o novo sistema venha a ser tão eficaz como o actual, e isso não é certo. “Antes de se aplicar [esta recomendação] tem que se pensar muito bem, porque há muita gente a trabalhar em regime de voluntariado” e, nesses casos, “a informação pode falhar”.

A recomendação do provedor define os termos em que a comunicação das autoridades judiciárias seria feita no caso dos funcionários públicos, estando esses termos já previstos na Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas: “Quando o agente de um crime cujo julgamento seja da competência do tribunal de júri ou do tribunal colectivo seja um trabalhador em funções públicas, a secretaria do tribunal por onde corra o processo, no prazo de 24 horas sobre o trânsito em julgado do despacho de pronúncia ou equivalente, entrega, por termo nos autos, cópia de tal despacho ao Ministério Público, a fim de que este a remeta ao órgão ou serviço em que o trabalhador desempenha funções.” O mesmo tipo de comunicação é feito “quando um trabalhador em funções públicas seja condenado pela prática de crime”.

Eficácia em dúvida

Contudo, e relativamente aos outros trabalhadores do sector privado e voluntariado, “caberá ao legislador definir qual é a entidade competente pela concretização da comunicação, entre as várias autoridades judiciárias que terão condições para o fazer”, recomenda José de Faria Costa, confiando que “os deputados da Assembleia da República saberão definir métodos de comunicação que garantam a necessária oportunidade e eficácia” da medida, em caso de esta ser acolhida.

É justamente a eficácia mencionada pelo provedor que suscita dúvidas do procurador Rui do Carmo. “Se a prática do acto da condenação não ocorrer no âmbito das actividades com crianças, pode não chegar ao conhecimento do processo”, explica.

O exemplo dado pelo provedor, no texto da recomendação, é relativo à educação e, nesses casos, há um acesso da entidade empregadora ao registo do trabalhador, o que pressupõe a sua autorização, esclarece. Nos outros casos, havendo um processo judicial, a identidade do empregador consta da informação das autoridades judiciárias, que ficariam, segundo a proposta do provedor, responsáveis por comunicar decisões judiciais relevantes como uma pronúncia ou condenação. Mas no caso dos voluntários, essa informação pode falhar porque as autoridades não têm garantidamente conhecimento de quem são as entidades para quem os voluntários fazem o seu trabalho.

Ana Perdigão, jurista no Instituto de Apoio à Criança (IAC) justifica também as suas reservas relativamente à proposta de José de Faria Costa pela frequência com que muitas actividades com menores de 18 anos são realizadas em regime de voluntariado. O voluntariado pode ser “uma via de acesso fácil às crianças, que muitas vezes estão em condições de grande vulnerabilidade familiar, social e económica”. E insiste: “Muitas vezes, o voluntariado pode funcionar como um corredor fácil de acesso às crianças sob uma veste altruísta.”

Ana Perdigão preferia, por isso, que o sistema mantivesse “a malha de protecção apertada”, continuando a vigorar a norma imposta com a alteração de 2015 à Lei n.º 113 de 2009, à qual acrescentaria a proposta do provedor de ficarem as autoridades judiciárias responsáveis por comunicar às entidades empregadoras a acusação ou condenação de funcionários seus.

A legislação de 2009 já incorporava na lei portuguesa uma directiva da União Europeia e a Convenção do Conselho da Europa para a Protecção das Crianças contra a Exploração e os Abusos Sexuais — Convenção de Lanzarote. Em 2015, foi reforçada, passando a ser obrigatório, todos os anos, para todas as escolas, creches e entidades cujos profissionais trabalham com crianças, solicitarem esse certificado aos seus trabalhadores. A regra aplica-se a trabalhadores do Estado ou do sector privado, e também a voluntários.

A jurista do IAC não vê motivos para se reverter o que ficou definido nessa alteração à lei aprovada em 2015 — se o objectivo for o superior interesse da criança e a sua protecção. “A prioridade é o interesse e a protecção da criança”, diz. “Já basta por vezes fugirem-nos situações que infelizmente nos passam ao lado.”

Situações recorrentes

No final de Julho, a Polícia Judiciária deteve um homem pela presumível autoria de vários crimes de abuso sexual de crianças e de actos sexuais com adolescentes, entre 2012 e Junho de 2016, na zona de Gondomar, que se relacionava com as crianças e os jovens na qualidade de treinador de futsal.

Uma mês antes, o Ministério Público deduzira acusação por abusos sexuais de crianças contra oito adultos, na zona de Palmela, que atraíam os rapazes a sua casa, oferecendo actividades lúdicas e disponibilizando-se a tomar conta deles depois de o primeiro contacto ser feito num clube de futebol para jovens na região, onde o principal arguido dava aulas.

E no ano passado, foram vários os casos de funcionários indiciados por este tipo de crimes em escolas, estabelecimentos de actividades com crianças ou lares de jovens: um auxiliar de acção educativa numa escola de Lisboa em Junho; um colaborador de actividades extracurriculares num jardim-de-infância na Amadora (que era familiar da directora do estabelecimento, que não tinha a situação regularizada e cujo encerramento foi ordenado pelo Ministério da Educação), em Outubro; e, três meses depois, um auxiliar de acção educativa numa escola em Ponta Delgada, que terá abusado de crianças entre os oito e os 12 anos.

Sugerir correcção
Comentar