Quando Bob Dylan se retirou para Woodstock em 1966 depois do célebre acidente de moto, as gravações que realizou com a Band de Robbie Robertson tornaram-se num dos “álbuns piratas” mais célebres do rock, conhecidas como The Basement Tapes, as “bobines da cave”. Vamos buscar isto porque Miles Ahead, o retrato impressionista que o actor Don Cheadle dedica a Miles Davis, decorre durante o “silêncio” auto-imposto do trompetista americano entre 1975 e 1981, e gira à volta de uma (inventada) “bobine da cave” que, com a ajuda de um (igualmente inventado) jornalista em busca de uma história, Miles procura por toda Nova Iorque.
É esse o filme feito por Cheadle, que se estreia na realização ao mesmo tempo que habita o trompetista face à câmara: um roman à clef que recusa a lógica do filme biográfico mas tece uma narrativa à volta de inúmeros pormenores verídicos (e alguns apócrifos). A sua ideia é criar uma história que flua como uma das improvisações experimentais do período de “fusão” do trompetista, que escape à linearidade narrativa para sublinhar ou iluminar fios condutores ou traços de união entre várias fases da vida do seu sujeito. A montagem é exemplar no modo como faz raccord entre eras e momentos diferentes da carreira de Miles, complementando a presença carismática de Cheadle, que mantém intacta a pose e a atitude do músico, da elegância cool dos anos 1950 aos delírios paranóicos alimentados a álcool e drogas dos anos 1970. Mas se se deve tirar o chapéu ao actor-realizador por não ter feito uma biografia como as outras, também se lhe deve dar na cabeça por não ter agarrado a essência de Miles. A abordagem impressionista e não-linear, que ilumina a carreira a partir dos “anos perdidos” durante os quais Miles não gravou nem tocou em público e abandonou o trompete, acaba por deixar o músico escapar-lhe por entre os dedos logo quando está à beira de o agarrar.