MacGyver, o herói que fazia bombas com clipes e pastilha
Richard Dean Anderson interpretava um agente secreto que era uma espécie de bombeiro de serviço da benemérita Fundação Phoenix.
Anos antes da Internet, naquelas longínquas férias de Verão que se arrastavam por três meses, uma paisagem suburbana tinha de ser palco suficiente para as aventuras estivais. Um ramo de árvore tornava-se numa G3. A bicicleta era promovida a avião. O prédio em construção era transformado em base rebelde. No fundo, todos tínhamos de ser MacGyver e aproveitar o que tínhamos à volta para inventar algo que derrotasse o tédio, esse arqui-inimigo.
Quase 30 anos depois, ditam as regras da sensatez que não devemos voltar ao lugar onde já fomos felizes, e uma passagem recente pela RTP Memória confirmou o receio de que há séries que não envelhecem bem. Mas façamos o exercício de recordar MacGyver com os olhos de quem vê pela primeira vez e encontra tudo lá. O prólogo com uma historieta da infância do herói para um efeito empático imediato. O genérico com aquela música a empilhar tensão até à explosão triunfal atrás do título da série. E Angus MacGyver com o seu canivete suíço, o homem que fabricava bombas com clipes e pastilha elástica, que não gostava de armas e que tinha medo das alturas.
MacGyver (Richard Dean Anderson) era um agente secreto e uma espécie de bombeiro de serviço da benemérita Fundação Phoenix (na altura, o regime fundacional estava em voga no sector da luta contra o mal – na mesma década, em O Justiceiro, Michael Knight e o seu KITT trabalhavam para a FLAG). Angus tinha a pinta e o cabelo de um trolha emigrado dos anos de 1980, um visual ligeiramente amenizado pelos óculos de aviador e o Jeep Wrangler. Tinha também uma aura libertária – era um antimilitarista e desconfiava do Governo (não será coincidência que alguns trolls da nova direita trumpiana utilizem a imagem de MacGyver nas suas identidades virtuais). Juntava-se em cena Pete Thornton (Dana Elcar), o melhor amigo e o permissivo director da fundação. Jack Dalton (Bruce McGill) era o amigo aviador, o bom malandro que se metia em esquemas de que tinha de ser salvo e que piscava compulsivamente o olho sempre que mentia. Murdoc (Michael Des Barres), assassino de rosto desfigurado, era o grande vilão da série, apesar de aparecer em apenas nove dos 139 episódios.
Bem espremido, disto saía pouca trama. MacGyver não era uma sitcom mas resumia-se no fundo a um running gag: a transformação de objectos banais e utensílios domésticos em armas para derrotar os maus. O verbo to MacGyver entrou na língua inglesa e os macgyverismos entraram na cultura popular mundial numa altura em que ainda não havia Google para os pôr à prova. A série pode ter levado muitos miúdos a interessarem-se pelos mecanismos fundamentais da física e da química, mas também terá inspirado muitas asneiras. Em Outubro de 1992, por exemplo, no norte de França, dois rapazes de 17 anos morreram na detonação de um explosivo de inspiração macgyveriana: uma mistura de açúcar e pesticida enfiada no guiador de uma bicicleta. A mãe de uma das vítimas chegou a levar a tribunal o canal France 2 pela exibição da série que teria ensinado o filho a fabricar a bomba, mas a estação seria ilibada.
MacGyver não era uma produção exigente nem dispendiosa. Muitas cenas de interior e as mesmas paisagens californianas (e mais tarde canadianas) a servirem de cenário a qualquer canto do globo, como uma Budapeste a cheirar a São Francisco no terceiro episódio da primeira temporada, onde também aparece um Médio Oriente filmado numa pedreira. O programa de humor Saturday Night Live brincava com isto em MacGruber, uma série de sketches que pareciam ser sempre filmados no mesmo vão de escada de um armazém (Richard Dean Anderson participou na sátira; Lee David Zlotoff, criador da série, levou os humoristas a tribunal).
A reposição da série na RTP Memória também deu para perceber por que é que Anderson teve uma carreira discreta – Stargate e pouco mais – depois do relativo sucesso de MacGyver. Se recordamos o agente da Phoenix como uma personagem estóica e lacónica, para sermos simpáticos, devemo-lo à inexpressividade soporífera do monocórdico Anderson, hoje com 66 anos.
Mas nada disto importava aos oito ou 12 anos, naqueles longos Verões offline em que a nossa atenção ainda não estava esquartejada em nanossegundos pelo Snapchat e o nosso cepticismo ainda não dispunha de uma Wikipédia na palma da mão. MacGyver sobreviveria em 2016? Vamos descobri-lo em Setembro. A norte-americana CBS vai estrear uma nova versão da série. Sem Anderson, rendido por Lucas Till. A reacção nas redes sociais ao primeiro trailer divulgado em Março foi negativa e um primeiro episódio-piloto foi atirado para o caixote do lixo. O projecto está agora nas mãos do realizador malaio-australiano James Wan, até agora conhecido pelas incursões no cinema de terror (Saw II, Saw III, Invocação do Mal) e pelo sétimo capítulo da saga Velocidade Furiosa. Se a improvável receita funcionar, será o derradeiro macgyverismo.
Esta série é publicada à segunda e à terça-feira. Próxima série: Veterinário de Província