Em França, o combate ao terrorismo está datado e é disfuncional
Depois de um ano mortífero, deputados propõem acabar com as redundâncias burocráticas e simplificar a máquina antiterrorismo.“Operamos com esquemas que datam dos anos 1980, uma época em que o terrorismo não era aquele que existe hoje”
Depois da mortandade vêm as perguntas. Nos dias que se seguiram ao grande atentado de 13 de Novembro em Paris, cidadãos, jornalistas e políticos questionavam-se sobre como fora possível que, apenas dez meses depois do último atentado na capital e de uma grande reforma no sistema de vigilância electrónica, um grande grupo de terroristas pudesse contornar novamente os serviços de segurança e matar 130 pessoas numa só noite.
As dúvidas não paravam por aí. Em menos de um ano, o país vivia um segundo atentado executado por cidadãos franceses já identificados pelas autoridades, fosse porque foram registados como possíveis ameaças à segurança nacional ou, no caso flagrante de um dos jihadistas do Bataclan, Samy Amimour, estavam mesmo impedidos de sair do país por já terem sido apanhados antes a caminho da Síria para combater com o Estado Islâmico, como muitos dos atacantes fizeram. Mas nada que os impedisse de desaparecer dos radares.
Para além do truísmo de que é impossível evitar todos os ataques terroristas, a comissão parlamentar de inquérito responsável por avaliar o comportamento dos serviços de informação franceses nos atentados de 2015 apresentou esta terça-feira um relatório que confirma o que muitos em França já sabiam: os seus órgãos de combate ao terrorismo estão datados, são disfuncionais, demasiado complexos, mal coordenados e partilham pouca informação entre si. “O país não estava preparado”, resume Georges Fenech, presidente da comissão parlamentar. "Houve falhas", admite.
O relatório apresentado esta terça-feira traça vários caminhos para a reforma dos serviços franceses de combate ao terrorismo. São 39 propostas em 300 páginas, produto de seis meses de consultas e 200 horas de entrevistas com ministros e directores de agências de informação. Sugere não só uma reformulação profunda da maneira como os diferentes órgãos operam, mas também novas estratégias de socorro, um novo quadro legal para lidar com ofensas terroristas e até um debate sobre como as redes sociais e os media devem agir em situação de ataque.
“Operamos com esquemas que datam dos anos 1980, uma época em que o terrorismo não era aquele que existe hoje”, argumenta Fenech, deputado dos Republicanos, numa entrevista ao Le Monde que partilhou com o deputado socialista e redactor do documento, Sébastien Pietrasanta. “É preciso haver mais ambição, racionalizar os serviços de informação e ter uma verdadeira coordenação ao nível europeu", resume.
Simplificação do sistema
A França tem hoje seis agências diferentes de combate ao terrorismo. Algumas estão sob ordens do Ministério do Interior, outras obedecem à Defesa, Economia ou Alfândega, e aqui residem muitos dos defeitos conhecidos na máquina francesa de combate ao terrorismo: as diferentes lideranças estão muitas vezes em confronto, as suas jurisdições sobrepõem-se e a informação cai frequentemente pelas fendas que separam os diferentes organismos — foi graças a isto que os irmãos Kouachi conseguiram escapar de Paris depois do ataque ao Charlie Hebdo, por exemplo.
A criação de uma agência nacional de combate ao terrorismo a mando do primeiro-ministro é discutivelmente a proposta mais transformadora no relatório. Deve reunir em si a coordenação dos vários serviços, ao estilo do que acontece com o National Counterterrorism Center, o equivalente norte-americano por quem passa hoje a planificação estratégica e a partilha de informação entre agências.
A comissão parlamentar sugere também a fusão de vários serviços de informação concorrentes, como, por exemplo, o da polícia e da gendarmaria [o equivalente à Guarda Nacional Republicana portuguesa]. Propõe ainda a supressão de algumas das competências da prefeitura policial de Paris — vista por muitos como “um Estado dentro do Estado” e um pesadelo no que diz respeito à partilha rápida de informação com outros serviços.
As “Fichas S”
O relatório parlamentar ataca também uma das mais conhecidas disfuncionalidades dos serviços de informação franceses: a vastidão da base de dados onde estão inseridos os nomes das pessoas que os órgãos de segurança consideram que se podem vir a tornar uma ameaça para a segurança nacional.
Muitos dos terroristas que atacaram a França em 2015 tinham uma “Ficha S”, o código usado para suspeitos de radicalização nas bases de dados francesas. Existem hoje mais de dez mil pessoas com este código, onde se incluem os nomes não só de possíveis extremistas islâmicos, mas também de activistas políticos ou de elementos de claques de futebol.
O registo não é apenas demasiado grande para vigiar todos os suspeitos — a “Ficha S” é apenas uma das 21 subcategorias numa base de dados com mais de 400 mil nomes. É também inacessível a alguns serviços de informação.
“A comissão de inquérito passou por grandes dificuldades para obter o nome dos indivíduos investigados pelos diferentes serviços na luta antiterrorismo. A razão é simples: não existe um ficheiro único”, conclui o documento publicado esta terça-feira, citado pelo Le Monde.
Cabe agora ao Parlamento discutir a aprovação das 39 propostas incluídas no relatório parlamentar, que recomenda também a criação de uma unidade de extração de feridos, o regresso a uma vigilância de proximidade e alargar os contactos com as agências europeias Europol e Frontex, por exemplo.
Mas, fora da organização dos serviços de informação e resposta a atentados, a comissão de inquérito atinge também a decisão do Governo francês em manter o estado de emergência, ainda em vigor desde os atentados de Novembro. “O estado de emergência teve efeito, mas parece ter-se reduzido rapidamente”, argumenta o relator socialista Sébastien Pietrasanta.