O último acto dos Buraka Som Sistema
Dez anos e centenas de concertos por esse mundo fora depois, os Buraka vão dar por encerrada a sua actividade esta sexta-feira com um concerto gratuito na Torre de Belém.
É o último acto. No ano passado, os Buraka Som Sistema, o fenómeno mais surpreendente da música portuguesa dos últimos anos, comunicaram que iriam parar por tempo indeterminado, depois de quatro álbuns, centenas de concertos e uma visibilidade internacional sem paralelo na última década para um grupo nacional. Esta sexta-feira sobem ao palco pela última vez, apresentando-se como curadores do evento Globaile, que contará ainda com os Tabuk ou os Dengue Dengue Dengue, naquilo que é também o encerramento das Festas de Lisboa. Numa década, os Buraka credibilizaram um género musical já conhecido mas até aí proscrito, o kuduro, inscrevendo-o no caldeirão das músicas urbanas, ao mesmo tempo que lhe atribuíam novas tonalidades, posicionando-se no mundo pela música singular, pela forma como utilizaram as ferramentas digitais de ligação global e por personificarem um Portugal pós-colonial, mestiço, hedonista, malicioso, performativo. Um percurso que aqui recordamos em dez passos relevantes.
1. O sucesso dos Da Weasel
Os Buraka não são hip-hop. Mas o caldo urbano do qual emergiram tem muito a ver com essa cultura. Daí que o sucesso dos Da Weasel durante parte das décadas de 1990 e 2000 seja pertinente para perceber o fenómeno. Depois dos anos pioneiros do rap em Portugal, o êxito transversal dos Da Weasel ou de Boss AC mostrava que já não se olhava tanto para a cor da pele, ou para ideias de afirmação identitária, quanto se tratava de consumir música que durante anos havia sido conectada com discursos de exclusão. Mas houve um contexto mais diversificado, assente na cidade de Lisboa, que ajudou a fermentar a ideia na mesma fase, quando se cruzaram uma série de DJ, produtores e músicos que partilhavam o mesmo tipo de sensibilidade. Editoras como Nylon, Kami’ Khazz e Meifumado, formações como os Cool Hipnoise, Spaceboys, Melo D, Loopless e Type ou colectivos como a Cooltrain Crew acabaram por originar um ambiente criativo propício ao surgimento de experiências híbridas como os Buraka. Todos esses agentes já pertenciam a uma geração pós-hip-hop, com um olhar transversal, mais interessada em assimilar todas as músicas à sua volta do que em restringir o leque de influências.
2. O surgimento da Enchufada
A acompanhar todas essas movimentações estavam Kalaf Epalanga, Rui Pité (Riot) e João Barbosa (Branko). Foi precisamente para aproveitar o caldeirão criativo que nos primeiros anos da década de 2000 se viveu em Lisboa – ao largo do grande público e das editoras – que nasceu a estrutura independente Enchufada: estúdio, editora e a unidade criativa que originou projectos como 1-Uik Project, Fusion Lab ou Buraka. “É uma espécie de lar”, dizia-nos Kalaf em 2003, “um local onde podemos criar sem restrições e onde várias pessoas e ideias se cruzam”. A partir de determinada altura parecia que iriam ser os 1-Uik Project o principal desafio da editora, mas quando se preparavam para lançar o segundo álbum já o furação Buraka germinava. Entretanto, em 2005, Andro Carvalho (Conductor) do grupo hip-hop Conjunto Ngonguenha começou a ser uma presença habitual na Enchufada. Conhecedor da realidade kuduro, introduz aos restantes a cantora Petty, de apenas 15 anos. Estavam lançadas as bases para o desígnio Buraka funcionar nessa fase inicial.
3. Yah! em Barcelona
Em Junho de 2005, no final de uma sessão DJ dos 1-Uik Project no festival Sónar de Barcelona, no espaço da RedBull Music Academy, João Barbosa surpreendeu os presentes pondo a tocar no final o tema que viria a ser o primeiro single do grupo um ano depois. Yah! foi apresentado perante uma plateia de estrangeiros enquanto Kalaf gritava: “This is Lisbon sound!” Pela primeira vez tiveram a percepção de que as ideias que estavam a desenvolver em Lisboa – ainda sem grande eco – faziam sentido ali. Foi também nessa ocasião que entregaram alguns temas ao americano Diplo (Major Lazer), o que viria a abrir-lhes portas mais tarde. Três meses depois, na Casa da Música, no Porto, numa noite da Enchufada, o nome Buraka Som Sistema acaba por nascer quando alguém disse ao microfone espontaneamente que estavam a trazer o som da Buraca para a Casa da Música. Foi assim que a Buraca, na Amadora, onde João e Rui se haviam conhecido na escola secundária, haveria de originar o nome do projecto.
4 . O clube Mercado
As primeiras reacções à música do grupo surgiram via Internet, onde deram a conhecer um ou outro tema em plataformas como o MySpace, mas a grande prova surgiu com as primeiras apresentações em palco. Em particular as que efectuaram no clube Mercado, em Lisboa, nos primeiros meses de 2006. Sem qualquer disco lançado, com meia dúzia de temas que circulavam de ouvido em ouvido, Lisboa começava a ouvir falar deles. Em palco, João e Rui eram os homens da componente sonora, enquanto Conductor, Kalaf e Petty se ocupavam das vozes, da dança e dos incitamentos ao público. Foram sessões frenéticas, essas, assentes nos devaneios rítmicos do kuduro, do dancehall ou do baile funk e nas palavras arremessadas, que pareciam funcionar como eco do ritmo, criando um novo léxico onde se misturavam o calão, o português oficial, o crioulo e o inglês. E com meia dúzia de sessões no clube Mercado os Buraka tornaram-se um caso de culto.
5. O concerto do Fabric
A partir do início de 2007, já depois de terem lançado o single Yah! e o miniálbum From Buraka To The World, as solicitações para espectáculos na Europa vão-se sucedendo e os ecos da imprensa internacional começam a sentir-se, com elogios em publicações como I-D, Dazed And Confused, The Fader ou Pitchfork. Em Abril desse ano regressam a Londres para um momento simbólico importante, actuando pela primeira vez no clube Fabric, um dos mais importantes da capital inglesa. Como consequência começam a ser agenciados pela empresa Primary, a mesma de Peter Gabriel ou Daft Punk, ao mesmo tempo que é nítido que já fazem parte de uma alargada família internacional (Diplo, M.I.A., Sinden, Santigold) de impacto global. “O facto de, estrategicamente, termos estabelecido em Londres o management e o agenciamento tornou mais fácil a ligação com o resto do mundo. Depois desse concerto no Fabric gerou-se um interesse à nossa volta que nos beneficiou”, afirmava João.
6. O vídeo de Sound of kuduro
Em 2008 a máquina Buraka funcionou a todo o vapor. Para isso contribuiu o lançamento viral do tema Sound of kuduro, com a participação vocal de M.I.A., que viria a abrir novas portas. O vídeo da canção, primeira amostra do álbum Black Diamond, teve honras de lançamento na Pitchfork, disseminando-se pela Internet, com imagens de movimentos de dança captados aquando da visita do grupo a Luanda. Os milhões de visualizações alcançados com esse tema viriam a repetir-se com outros (Hangover, Kalemba, Bota), revelador da forma como souberam jogar com as novas plataformas de comunicação. Nessa altura já Petty havia abandonado a formação, mas os concertos mundo fora continuaram, com o grupo a acolher o baterista Fred Ferreira (Orelha Negra, Banda do Mar) para os espectáculos ao vivo, e a suscitar a atenção dos meios de comunicação internacionais, desta feita já não apenas especializados (The Guardian, New York Times, El País, Libération, Al Jazira, CNN).
7. O festival Coachella
Entre 2006 e 2008 os Buraka haviam tocado por toda a Europa, dos clubes mais selectos aos festivais de grandes multidões. Também já tinham estado nos EUA, mas em Abril de 2009 realizam a primeira digressão consistente pelo território americano, já depois de o álbum Black Diamond ali ter sido lançado. Os resultados são excelentes, garantindo-lhes visibilidade, mormente em dois momentos: o concerto no festival Coachella, um dos mais influentes dos EUA, onde acabaram por ser um dos grupos mais badalados na imprensa, e a actuação no Bowery Ballroom em Nova Iorque. Estiveram longe de ser os seus espectáculos com mais público ou os mais convincentes, mas foram provavelmente dos mais importantes da sua carreira pelo impacto mediático obtido e pela rede de relações que desencadearam.
8. A relação com Espanha
No campo da cultura popular existe um grande desconhecimento em Espanha do que se passa em Portugal e vice-versa. Mas os Buraka não se podem queixar. Foi no Sónar de Barcelona que mostraram pela primeira vez o tema Yah! e foi ali também, em 2009, que arrancaram uma actuação inesquecível que lhes valeu grande protagonismo, de tal forma que acabaram por regressar ao festival mais três vezes, um privilégio reservado a eleitos. Mesmo assim nada fazia prever o que aconteceu no final de 2009. Os espanhóis renderam-se a Kalemba (wegue wegue) e durante sete semanas a canção não saiu do primeiro lugar da tabela de singles. “Esse facto serviu, acima de tudo, para tomarmos consciência do que estava a acontecer, porque no meio dos acontecimentos é fácil não ter esse distanciamento”, dizia João, numa altura em que o projecto já contava com a voz de Blaya.
9. As noites Hard Ass
Em Portugal o fenómeno Buraka foi alvo de inúmeras resistências, muitas delas só esbatidas pelo impacto internacional do grupo. A sua aclamação sempre viveu de paradoxos: por um lado é verdade que foram enchendo grandes espaços, por outro ainda hoje se vislumbra alguma ignorância em relação ao seu percurso. Essa relação paradoxal foi durante os primeiros anos percepcionada pelo próprio grupo, que compreendeu que haveria a ganhar em fomentar mais movimentações e apoiar outros projectos, daí a preocupação das noites Hard Ass em Lisboa, forma de divulgar e experimentar música tão local quanto global. Na actualidade, finalmente, sente-se que existe um ambiente pós-Buraka, havendo vários projectos credíveis com a sua própria identidade (dos Throes + The Shine a Batida), ao mesmo tempo que a actividade de editoras como a Príncipe tem atribuído visibilidade a uma retaguarda infindável de nomes, alguns no activo antes dos Buraka, como DJ Marfox, e outros fazendo parte de uma nova geração, como Nigga Fox, DJ Firmeza ou Nidia Minaj.
10. Globaile
Parar para respirar, depois de dez anos intensos. É assim que eles falam do momento actual. Nos últimos meses têm andado em digressão, com escalas na Colômbia, nos Estados Unidos e na Europa, e esta sexta-feira despedem-se dos palcos com um concerto no Globaile, de que são eles próprios curadores. Tudo indica que será a última vez que os veremos ao vivo, embora exista quem não acredite. Em Fevereiro, Andy Duggan, o agente internacional do grupo, dizia-nos: “O mais provável é regressarem daqui a uns anos porque têm uma base de admiradores muito leais.” O evento, que começa pelas 17h, é composto por concertos e sessões DJ, com destaque para os Batuk (18h), o excelente colectivo fundado pelo músico sul-africano Spoek Mathambo e pela cantora moçambicana Manteiga, activistas do afro-house, ou para os peruanos Dengue Dengue Dengue (20h), com a sua infusão muito particular de cumbia, tecno e dub. O brasileiro MC Bin Laden (21h) proporá uma sessão de baile funk, enquanto os portugueses Dotorado Pro (19h) e Kking Kong (17h) tratarão de representar a Enchufada, antes de os Buraka (22h) subirem pela última vez ao palco.