A década em que Portugal se descobriu nos Buraka
Talvez os Buraka tenham contribuído para que se tenha ganho consciência de um Portugal negro, africanizado, hedonista, performativo, sem medo da pele.
Não existem dúvidas de que os Buraka Som Sistema são um caso de sucesso. Num país como Portugal onde ainda parece existir um obstáculo anímico que leve mais pessoas a posicionar-se no espaço global apenas pela qualidade do seu trabalho, eles conseguiram-no. Uma conquista que merece ser enaltecida, até pelo seu carácter singular, pelo menos quando se pensa no circuito onde eles se movimentaram ao longo destes dez anos.
Mas terá o seu exemplo frutificado e propiciado a criação de novos afluentes e descendências? Por um lado sim, porque conseguiram credibilizar um género musical já conhecido, mas até aí largamente proscrito (o kuduro), inscrevendo-o no caldeirão das músicas urbanas globalizadas, ao mesmo tempo que o reinventaram, atribuindo-lhes novos elementos e tonalidades.
Eles não têm que ser símbolo seja lá do que for. Nem embaixadores de nada. São o que são. Um grupo de agentes criativos à procura do seu lugar no universo da pop, que entendeu que na actualidade tudo se joga numa dimensão mundializada.
Mas é inegável que, de forma directa ou não, tiveram um papel fundamental na afirmação de uma “cultura negra portuguesa”, já não tão dependente de modelos totalmente exteriores. Claro que a presença africana em Portugal é secular e o efeito que desencadearam foi apenas um entre outros ao longo dos anos, mas personificam o irromper de uma nova linhagem que foi capaz de criar e atribuir credibilidade a novos imaginários e experiências no contexto do Portugal pós-colonial. Hoje essa presença pode ainda não estar consolidada, mas sente-se de forma vibrante.
Nas ruas, nas lojas, na TV, no espaço público, nas artes, na literatura, nas roupas, nos penteados, no trato social, na língua ou na boémia, vislumbram-se marcas dessa nova “cultura negra portuguesa pós-colonial”. A um nível mais subterrâneo, na música, uma série de nomes foi-se impondo, aqui e internacionalmente, como Batida, DJ Marfox, Nigga Fox ou Nidia Minaj, estes três últimos nomes pertencentes à família alargada Príncipe, a editora que organiza festas mensais no MusicBox. Mas existem outros exemplos, como os Throes & Shine e Octa Push, ou numa perspectiva um pouco mais ampliada, os Gala Drop e Paus, para já não falarmos da editora Enchufada dos próprios Buraka.
Ao mesmo que, no centro do mercado, assistíamos ao triunfo da kizomba e de nomes como Anselmo Ralph ou Nelson Freitas, em simultâneo uma novíssima geração das electrónicas, que já cresceu com esta realidade sedimentada, devolve-nos a banda-sonora fragmentada de uma obscura Lisboa pós-colonial e pós-internet – basta ouvir a música de editoras como a Golden Mist ou AVNL ou de projectos como Old Manual, Rap/Rap/Rap ou Blastah.
Esta realidade plural, que se desenvolve por entre vários planos, muitas vezes sem chegar a formar um todo coerente, era qualquer coisa que que há dez anos se pressentia, mas ainda não tinha sido activada. Era mais desejo que realidade. Hoje ela aí está, dinâmica, tão desordenada quanto rica. “É verdade que conseguimos abrir portas junto de um público que foi ficando cada vez mais receptivo para nos ouvir, mas entrar na vida das pessoas exige entrar no seu carro e na sala de estar”, afirma João. “E isso só com canções. A kizomba veio fazer isso. De repente a kizomba virou banda-sonora da cidade, desde taxistas a bares de Alfama.”
Significa que já não tensões, preconceitos e questões por resolver trazidas pela música e pela forma como a experimentamos? Não tenhamos ilusões. Preconceitos haverá sempre, o que se pode fazer é tentar circunscreve-los. E nisso, a música, e as artes, podem ser importantes, estimulando o conhecimento, antecipando ou impulsionando novas realidades, contribuindo para processos de metamorfose social ou cultural, mas isso por si só não basta.
São essenciais políticas estruturais (emprego, habitação, educação, acesso à cidadania) para que não sejam criadas subclasses marginalizadas, tal como é preciso que a visibilidade adquirida por alguns agentes da música na última década se alargue horizontalmente para outras esferas da vida portuguesa.
Ao longo destes dez anos talvez os Buraka tenham contribuído para que, em alguns países, se tenha ganho consciência que existe também um Portugal negro, africanizado, hedonista, performativo, sem medo da pele, longe da imagem romantizada do Portugal branco, católico e fadista. Talvez sejam precisos agora mais dez anos para isso ser plenamente aceite entre fronteiras.
Talvez o objectivo dos Buraka seja agora esse. Depois de terem comunicado para fora que existia um outro Portugal para descobrir – nem sempre de forma clara, porque eles próprios espelham as baralhações identitárias que lhes são projectadas – e que é possível criar impacto global a partir de um país periférico, talvez se abra agora um novo ciclo de participação mais local.
“Uma das coisas que lamento, e que nunca conseguimos ao longo destes anos, foi dialogar com outros actores sobre estratégias de como pôr uma cidade no mapa”, lança às tantas Kalaf. “É preciso música e conteúdo, mas também pessoas no terreno, que entendam o que está em jogo. Aqui, havendo esse diálogo, podem-se construir coisas interessantes. Há receio em acreditar que é possível fazer de Lisboa um pólo musical, mas a cidade tem imensa criatividade e muitos projectos para criar impacto global. Seria uma pena desperdiçar esta oportunidade em aberto.”