O som da terra argentina a tremer
Os filmes podem não ser todos memoráveis, mas a tensão é cortante. Com eles a falarem de si próprios, perante a imprevisibilidade do mundo, entregando-se à inquietação e com sentido de irrisão invejável - "eles" são os argentinos, é o seu cinema que desfila a partir de hoje no S. Jorge, em Lisboa.
Gesto misterioso e, ao mesmo tempo, tonitruante de Paulina, jovem advogada argentina que vai para o campo trabalhar: abandona o percurso em direcção ao topo da carreira judicial para solidificar a consciência política de uma comunidade remota na fronteira com o Paraguai, ignorada pelo dinheiro do país rico. Onde é violada.
Paulina reconhece o grupo que a violentou, mas escolhe não denunciar. Para quebrar uma cadeia mais vasta de esquecimento, de traição dos valores de solidariedade, de violência social, argumenta. Como responde, às tantas, ao espanto do pai, juiz que quer fazer “justiça”: “Quando há pobres envolvidos, a polícia não procura a verdade, procura culpados.”
É sob o signo desse gesto, sacrificial, que decorre o II Festival de Cinema Argentino de Lisboa, no cinema São Jorge: Paulina, de Santiago Mitre, prémio FIPRESCI em Cannes 2015, é o filme inaugural, hoje, às 20h (repete sábado, às 22h). É a culpa de uma mulher com cabeça e seus argumentos, simétrica daquela outra que vivia na anestesia da Mulher sem Cabeça (2008) de Lucrecia Martel, embora uma fale e a outra não. O filme de Santiago Mitre decreta excessivamente a exemplaridade do gesto da sua personagem, e com isso pode sobrar incredulidade para o espectador, como se presenciasse a proeza de uma cruzada. Mas não é certo que consigamos limpá-lo da memória, apesar de ter sido copiosamente “justificado”.
A tensão parece uma narrativa monomaníaca, aliás, que se desenvolve desde esse filme até 3 de Julho, que é a data do final do ciclo. Com os argentinos a falarem de si próprios perante a imprevisibilidade do mundo entregando-se com deleite à inquietação e à violência e com sentido de irrisão que é invejável – convocando o Fim (o evidentemente irónico e quase satírico Parabellum, de Lukas Valenta Rinner – 5ª feira, 30, às 22h; 6ª, 1, às 18h) antes mesmo que ele chegue.
Os filmes podem não ser todos memoráveis, mas a tensão é sempre desassombrada, cortante. Com as mulheres, sobretudo elas, a darem o corpo... Veja-se, no extremo oposto de Paulina, a apatia da personagem de Paula, primeira longa-metragem de Eugenio Canevari (5ª feira, 30, 18h; dom, 3, 20h): é uma empregada na quinta de uma família rica que, mais do que silenciada, parece viver em risco de ser liminarmente elidida, integrando a parte dos excluídos, que são tornados invisíveis e que perdem com isso a consciência de si, que o racismo da sociedade argentina, daquela parte que se vê com os seus “pergaminhos” europeus, coloca a uma distância de segurança (lá temos que evocar de novo Lucrecia Martel, e desta vez é La Ciénaga, de 2001, filme decisivo para a ampliação do som desta terra a tremer e deste murmúrio dos que desaparecem, como fantasmas, para poderem sobreviver).
Paulina, Paula... Susana Santos Rodrigues, uma das programadoras, com Maria João Machado, do ciclo, evoca o recente Aquarius, do brasileiro Kleber Mendonça Filho, com Sónia Braga (estreia mundial no último Festival de Cannes), para falar de “um momento” actual no cinema latino-americano “em que as personagens femininas conseguem incorporar algo que o continente está a atravessar; a mulher [como personagem de cinema] consegue ser emblema disso tudo”.
Maria João desenrola... “Os governos de esquerda goraram as expectativas, há uma saturação das crenças na esquerda, que numa primeira fase alimentou as famílias, mas não pôde fazer muito mais. Não há consciência política, embora haja consciência das necessidades”. É essa incapacidade de conseguirem escrever as suas vidas no tecido social, de tornar o seu corpo visível, a enorme contradição dos gestos, misteriosos, às vezes ilegíveis, das personagens do fascinante Corpo de Letra, documentário de Julián d’Angiolillo (sáb., 2, 16h) – afinal, são graffitters que, pela noite dentro, como num mundo clandestino, enchem a cidade de mensagens políticas que vão ser lidas pela manhã.
Paulina, de Santiago Mitre, e Paula, de Eugenio Canevari, eram filmes que estavam no tronco inicial em volta do qual esta segunda edição do festival foi completada. É assim que as coisas acontecem, duas ou três escolhas inciais vão depois proporcionando e organizando diálogos e uma narrativa, a programação. Susana e Maria João, respectivamente sete e oito anos de vivência em Buenos Aires, dizem que não mostram filmes de que não gostam. Querem um cinema “que não seja conforme, que não seja convencional, que seja inquieto”. Nesse tronco inicial estava ainda El Incendio, de Juan Schnitman (6ª, 1, 22h; dom., 3, 22h), que Maria João considera representativo da “hostilidade económica” da sociedade argentina.
EL INCENDIO de Juan Schnitman from wankacine on Vimeo.
É um filme sobre uma conjugalidade explosiva - ou que assim é tornada pelo quotidiano. Por exemplo: a simples decisão de comprar um apartamento. Susana e Maria João podem ser testemunhas dessa tensão, desse desassossego. De uma aventura que faz de quem quer comprar casa - neste caso, um jovem casal - personagem involuntária de um thriller ou de um western urbano: o dinheiro escondido no corpo, a caminho da casa de câmbio e depois do banco, à mercê das redes de informadores que anunciam que há notas a circular pelas ruas. É o dinheiro que é preciso trocar, pesos para dólares, porque o mercado imobiliário move-se com dólares (Susana diz que levou algum tempo a perceber porque é que todos os seus amigos argentinos sabiam diariamente do valor do câmbio do dólar e da importância diária do valor do câmbio do dólar). Mesmo que as leis condenem a transacção, o banco integrará essa “clandestinidade”, tudo se passando, olhando para o lado quando for necessário, dentro das instalações oficiais. Não há grandes surpresas em El Incendio, os corpos falam do que lhes acontece, sangram cá fora para dar sinais do que se passa lá dentro. Quer dizer: desde o primeiro plano que se sabe que é a angústia que está a queimar mas é essa reiteração - tínhamos dito: sinais de monomania - que faz o filme cumprir com o que se conhece e se vive(u).
Diz Susana, e pode ser a este propósito: “Há um lado de criatividade impressionante na Argentina. Por exemplo, na escrita, na dramaturgia, não sei o que há na água daquele país... São coisas que nos falam de forma muito directa, que nos falam da nossa experiência, do que reconhecemos à nossa volta. Isso vem-lhes da terapia, certamente. Toda a gente vai ao psicólogo na Argentina. As pessoas podem falar de si com uma distância enorme” - de “uma maneira analítica e irónica, mas em todo o caso é qualquer coisa de intrínseco”, conclui Maria João.