Sobre a noite passada: Os Ventos do Inverno já sopram n’A Guerra dos Tronos
A primeira temporada que foi além do mapa literário de George R.R. Martin termina com o título do livro que ele ainda está a escrever. Caso único na actualidade. O que é o cânone, o que é um spoiler para os livros (num artigo sem spoilers)?
Vinte anos separam o primeiro livro da série de televisão. E foi a televisão que, segunda-feira à noite, deslindou um segredo guardado há décadas – num episódio de final de temporada cujo título, Os Ventos do Inverno, é o do livro que deveria ter sido escrito antes de a série o apanhar. É um momento singular nos media: duas obras em aberto concorrem entre si, a criação que ultrapassa o criador. Há quem defenda que são produtos diferentes, ou que “só este ano A Guerra dos Tronos se tornou uma série de TV”. Onde fica o fã?
Muitos leitores esperavam há muito por uma revelação que mudasse o mapa em que se movem Jon Snow, Daenerys Targaryen e os reinos de um universo ficcional que se tornou num dos maiores fenómenos da cultura popular do século XXI. A Guerra dos Tronos dava pistas na TV, mas era nas páginas de A Canção de Gelo e Fogo e nas comunidades on-line por ela originadas que certa teoria sobre a filiação de uma personagem central vivia há mais tempo.
Neste final da sexta temporada que é já o segundo episódio mais popular de sempre da série no top 10 do IMDB, essa teoria foi rapidamente deslindada. No meio de 70 minutos de imagens vorazes que reposicionaram as peças do xadrez criado por George R.R. Martin em 1996. E que eliminaram muitos jogadores.
“O caso de A Guerra dos Tronos e A Canção de Gelo e Fogo é talvez único. Não consigo lembrar-me de nenhum outro em que o filme ou a série tenha saído enquanto o material de origem ainda estava a ser escrito”, escreveu Martin quando, em Janeiro deste ano, confirmou ao mundo que não iria conseguir terminar The Winds of Winter, o sexto livro d’A Canção, a tempo de preceder a série que começou em 2011. David Lavery, professor de Literatura Inglesa e Televisão da Middle Tennessee State University, e que lecciona uma cadeira sobre a série, situa-nos: “Estamos num território absolutamente não mapeado da [teoria da] narrativa e A Guerra dos Tronos ficará na história por nos ter levado por aí. Nos mapas antigos não se escrevia Here Be Dragons? Here Be Dragons, então, Drogon e os outros”, ri-se ao telefone com o PÚBLICO na véspera do final da série (que foi para o ar domingo nos EUA).
Ao cabo de cinco temporadas, muitas das principais linhas narrativas dos livros tinham-se esgotado e passou a ser a televisão a revelar a dezenas de milhões de espectadores em primeira mão pontos-chave da mitologia. Há fãs que nunca viram a série, frustrados pela demora na escrita de cada livro - em Portugal os cinco livros, que venderam mais de 60 milhões de cópias em todo o mundo, foram editados em dez volumes, com vendas superiores aos 250 mil exemplares e que são os bestsellers da editora Saída de Emergência. Outros que os encaram como dois produtos complementares, ou simplesmente diferentes – muito na linha do que os protagonistas da série disseram ao PÚBLICO. E há ainda aqueles que, como o utilizador Douglas Cohen escreveu num comentário no blogue de Martin, querem “viver cada pequena revelação directamente da fonte” e ponderavam “deixar de ver a série até sair o seu próximo livro”: “Para alguém como eu, a sua história é sagrada. A série da HBO é óptima, mas não é cânone.” Não estamos só em território desconhecido, estamos no território da Narratologia.
O cânone e a verdade
Enquanto crianças, valorizamos a estabilidade das narrativas. É algo que está connosco desde os contos de fadas ou as histórias de embalar. Play it again, Sam, e exactamente da mesma maneira. Se já existia instabilidade entre os dois suportes em que a história de Westeros vai sendo contada, agora o risco parece ainda maior para as antigas crianças que vêem A Guerra dos Tronos e procuram uma verdade única na história. “O cânone dá-nos ordem, sistematiza os conceitos, ordena-os”, explica Iolanda Freitas Ramos, professora do Departamento de Línguas, Culturas e Literaturas Modernas da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, “estabelece que determinado livro ou certa obra faz parte do cânone, no sentido em que merece, tem qualidade suficiente para isso”, exemplifica. “A nossa procura, em termos de natureza humana, pela ordem, é o que nos faz querer que o pai conte a história sempre da mesma maneira.”
Os produtores executivos da série, David Benioff e D.B. Weiss falaram sobre isso com Martin. “Não queríamos apanhar” os livros”, disse Benioff na Universidade de Oxford em Março de 2015. Mas “George tem o seu processo” e a HBO não pode “interromper a série”. “Pode haver alguns desvios no caminho, mas vamos para o mesmo destino”, garantiu o autor televisivo. “Gostava que houvesse algumas coisas que não tivéssemos que revelar em relação aos livros, mas estamos entre a espada e a parede. The show must go on.”
Este é um produto cultural complexo, feito da série, de livros, de novelas, atlas “históricos” e também da participação dos seus fãs no Reddit, nos podcasts, nos sites especializados ou em jogos como o Telltale. A expectativa marca-o de forma única, muito pelo estilo narrativo impiedoso de Martin. No século XIX, “as pessoas amontoavam-se nos cais em Nova Iorque à espera do mais recente capítulo de Little Dorrit para saber se Dorrit estava viva ou morta”, recorda David Lavery. “Mas Charles Dickens tinha total propriedade destes textos. A Guerra dos Tronos é um óptimo exemplo do que agora é considerado uma ‘narrativa vasta’ – não é um simples romance, não é um simples conto, não é um simples filme de duas horas.”
Neste percurso em que faltam dois livros (ainda sem data de publicação) e duas temporadas (uma em 2017, outra em 2018) para chegar ao tal fim comum, o criador foi ultrapassado pela sua criação. Dificilmente será ele a contar o fim da sua história. “Nunca pensei que a série conseguisse apanhar os livros, mas apanhou”, escreveu Martin em Janeiro, ecoando alguma frustração.
Não é a primeira vez que uma adaptação se sobrepõe ao seu material de origem, mas com estes contornos haverá apenas um exemplo – e é de animação: Fullmetal Alchemist, a manga de culto que começou a ser adaptada para televisão em 2003 e que em pouco mais de 20 episódios já tinha apanhado os livros. Tornou-se uma história muito distante da visão da artista Hiromu Arakawa, mas viria a ter uma segunda série em que os livros já eram de novo o “cânone”.
Iolanda Ramos, que acompanha A Guerra dos Tronos casualmente e faz investigação na área dos Estudos Culturais e da adaptação, tem muitas perguntas sobre o fenómeno. Qual é o critério que define o que é o cânone? “A qualidade? Mas como se estabelece a qualidade? É através [do critério] da divulgação, do número de receptores?”, destrinça. E a autoria? O arquitecto deste mundo – embora Martin prefira ser visto como um jardineiro – firma o cânone na página, mas ele pode ser dinâmico. No terreno da Teoria Literária e do “pós-modernismo estamos em águas bastante fluidas”, diz Iolanda Ramos, recuperado “o poder do autor” mas recuperada também a força da obra por si só, diz, opinando que neste caso “pode-se falar de co-autoria”.
Um mundo criado por Martin e podado e desenvolvido agora em paralelo por Benioff e Weiss, três construtores de mundos no reino da adaptação. E dois produtos diferentes, opina a docente de Estudos Culturais. Como no universo de Star Wars, por exemplo, tão maciço que tem o seu próprio curador oficial do cânone – Leland Chee é responsável pelo Holocron, a base de dados que fixa o cânone da criação de Lucas que muitos outros já expandiram.
Dois universos
“Temos a grande dádiva de dois universos – o universo da série e o universo dos livros. Não têm de coincidir completamente. Um universo alternativo não é algo mau e a narrativa em si mesma beneficia”, defende Lavery. “As obras de arte evoluem, sejam as variantes das peças de Shakespeare, as revisões de Kanye West a[o álbum] The Life of Pablo ou a edição de George Lucas a Star Wars. A Canção de Gelo e Fogo não é a novelização de A Guerra dos Tronos e agora A Guerra dos Tronos pode ser mais do que a serialização dos livros”, escreveu James Poniewozik, crítico do New York Times. É ele que defende que só agora A Guerra dos Tronos se tornou um produto televisivo autónomo.
Esta foi uma temporada que avançou aos sopetões, entre sacudidelas emocionais a uma porta e abalos sufocantes de espectacularidade no campo de batalha. Foi uma temporada “mais rápida, mais simples e mais satisfatória para a multidão”, defendia Poniewozik esta segunda-feira. Não é uma opinião unânime: “divergiu maciçamente do cânone estabelecido” e prejudicou-o, defende Sonia Saraiya na Variety. “A Guerra dos Tronos tipicamente tem estado melhor quando adere mais de perto ao seu material de origem”, escrevia Christopher Orr em Abril na Atlantic.
Martin começou a escrever A Canção de Gelo e Fogo depois de anos de frustração como argumentista de televisão, meio em que o espaço e o tempo eram incompatíveis com a ambição das suas histórias. Anos mais tarde, os livros espessos que considerara “impossíveis de filmar” tornaram-se uma série de TV. “As pessoas perguntam-me se é o que eu tinha imaginado e a minha resposta é não”, disse à Time em 2011, “mas o que eles fizeram é bom”.
No ano passado, com o tempo a apertar entre o livro mais recente e a temporada iminente, disse numa convenção: “Vou contar a minha história, e eles vão contar a história deles e adaptar os meus livros, e veremos.” Tenta apaziguar os seus fãs mais antigos. “Alguns dos spoilers que podem encontrar na sexta temporada podem não ser de todo spoilers… porque a série e os livros divergiram, e continuarão a fazê-lo.” Liberta capítulos de The Winds of Winter, fala ocasionalmente em público, e escreve. Promete diferenças em relação à série que, sem ele, não existiria. “Mesmo que se prefira uma à outra, pode-se tirar um prazer dos diabos de ambas.”
Notícia actualizada às 13h58 com dados de vendas dos livros e audiência média da série e corrigida sobre Little Dorrit