Aqui discutiu-se a canção como arma
Entre 15 e 17 de Junho, a Faculdade de Ciências Sociais e Humanas de Lisboa acolheu a Conferência Internacional Canção de Protesto e Mudança Social. A música como arma política, vista através de tempos e geografias. José Mário Branco encerrou com chave de ouro os três dias do encontro.
Folhetos de canções vendidos por músicos viajando de terra em terra no século XVIII. Canais do YouTube que usam estruturas hip hop para passar mensagem. Italianos no século XIX a adoptarem um coral de ópera como forma de protesto, assim contornando a censura austríaca – parece uma história familiar: ouvimo-la várias vezes aos músicos portugueses, que, durante o Estado Novo, procuravam escapar ao lápis dos censores.
Para trás e para a frente no tempo, cruzando geografias e formas musicais. Para trás e para a frente, a música como uma expressão privilegiada para a denúncia, para a luta política. Uma ideia entre muitas: “Sem público, não há obra”, disse-o José Mário Branco no Auditório 1 da Torre B da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas (FCSH), na Universidade Nova de Lisboa, sexta-feira, quando se aproximava o final da primeira Conferência Internacional Canção de Protesto e Mudança Social, que aí decorreu entre 15 e 17 de Junho.
Um par de horas depois, na esplanada da instituição, na Avenida de Berna, ouvir-se-ia o resultado do workshop sobre Cante Alentejano dirigido por Celina da Piedade, ouviram-se canções de protesto italianas, viu-se o etnomusicólogo Anthony Seeger, neto de Charles, sobrinho de Pete, juntar-se à festa com o seu banjo. Anthony, que, durante a tarde, em conversa com o PÚBLICO, defendia estarmos neste momento a passar por "um momento de mudança na relação entre música e protesto” – “a internet e a música na internet não são assim tão velhas”, sorriu –, enquanto recordava palavras do avô, nome imprescindível da etnomusicologia. “Foi a linguagem que começou a maioria das guerras, precisamos de fazer mais música”.
Inserida no plano de actividades do recentemente fundado Observatório da Canção de Protesto, com sede em Grândola, a conferência foi uma co-organização do Instituto de Etnomusicologia – Centro de Estudos em Música e Dança (INET-MD), do Instituto de História Contemporânea da FCSH, da Universidade Nova de Lisboa e da Câmara Municipal de Grândola.
Para além dos académicos e estudantes portugueses, contou com a participação de quase duas dezenas de investigadores vindos de todo o mundo, numa rede de olhares e estudos complementados com a abertura ao exterior da academia – e ouviram-se as Heróicas, de Lopes-Graça nas ruínas do Carmo, quarta-feira; e viajou-se no dia seguinte até Grândola, vila de ressonâncias míticas na história da canção de protesto portuguesa, para ouvir falar das canções da Primavera Árabe, ou para ver uma exposição dedicada a José Afonso.
“Encontros como este são extremamente importantes”, defende Anthony Seeger no seu português de sotaque brasileiro, aprendido nos anos em que viveu no Brasil, durante os quais trabalhou junto de tribos amazónicas, daí resultando a obra Why Suyá Sing: A Musical Anthropology of Amazonian People (1987). “Esta é uma parte essencial da nossa vida enquanto pensadores. Numa conferência como esta, ainda que breve, criam-se relações que podem resultar em anos ou décadas de trabalho conjunto. Este contacto directo é determinante, caso contrário, só temos uma seca relação de palavras”.
Anthony Seeger nasceu em 1945. Quando tinha seis anos, já os Estados Unidos estavam “a entrar num momento de repressão muito forte contra a esquerda” – os anos da paranóia anti-comunista representado pelo senador McCarthy. Ele lembra-se do tio Pete Seeger ter sido obrigado a testemunhar perante o Congresso americano. Lembra-se, como contou na sua apresentação na manhã de sexta-feira, de o pai entrar zangado na sala enquanto ele tocava. Fechou a janela e avisou-o: “Nunca mais toques essa canção com a janela aberta”. “Cresci sabendo que a música não era só uma questão de beleza e de estética”, lembra Anthony.
Disso, nos seus mais diversos aspectos, tratou a conferência na FCSH, a segunda organizada pelo INET-MD depois de Conferência Internacional Música e Mobilidade Humana, que decorreu entre 7 e 9 de Junho.
Decorrendo em várias salas em simultâneo, pudemos acompanhar, como aconteceu na quinta-feira, a história do hip hop na África do Sul pós-apartheid, contada por Lee Watkins, da Universidade de Rhode Island, e depois, através da apresentação do aluno de doutoramento Pedro Miguel Nunes, perceber como o coral Va pensiero, do Nabucco de Verdi, estreado em 1842, se transformou em hino não oficial do desejo de independência italiano perante a ocupação austríaca.
“O mia Patria, si bella e perduta!”, cantavam os milaneses aos soldados que nada podiam fazer para impedir o protesto – pois se era “apenas” um coral sobre os hebreus em fuga dos babilónios, que podia fazer a censura do poder para impedir a manifestação, rapidamente replicada por todo o território italiano?
Enquanto acompanhávamos as apresentações – a música da luta anti-nuclear japonesa no pós-Fukushima, por Noriko Manabe, a difusão de canções de protesto nos Estados Unidos do século XX, por Anthony Seeger, a intervenção online com a sátira e a música como elementos primordiais, por Amit Gullitz –, alargava-se perante nós o mundo da canção como arma política. Concluíamos também que, no fundo, as mudanças estão mais relacionadas com a evolução tecnológica do que com a natureza do processo. “Mas há que contar também com o contexto específico da música”, dir-nos-á Seeger. “A música no período revolucionário português é bastante peculiar. E o papel de terem a música, duas canções, a lançar a revolução é inédito”.
Do universal para o particular
No Espaço do Aluno, no piso térreo da Torre B, está montada a exposição Disco na Luta, dedicada à discografia revolucionária portuguesa (continua aberta ao público durante esta semana). Mais de duzentas capas da colecção pessoal de Hugo Castro, aluno de doutoramento, um dos muitos envolvidos na organização de toda a conferência (o envolvimento activo destes seria destacado pela impulsionadora, a professora Maria de São José Côrte-Real, como um dos “destaques mais positivos” daqueles três dias), organizados e contextualizados para criar um quadro pictórico da música no período pré e pós-revolucionário. Entre edições estrangeiras de José Afonso, álbuns históricos de Adriano Correia de Oliveira ou raridades de edição partidária, vemos, por exemplo, a discografia do GAC, grupo fundamental na refundação da relação da música portuguesa com as suas tradições, ligado à UDP, ou discos do Coro Popular O Horizonte É Vermelho, criado no seio do PCTP-MRPP. Na manhã de sexta-feira, vimos os dois, frente a frente, quatro décadas depois.
António Moreira pertencia ao GAC. Carlos Moreira, seu irmão, ao Coro Popular O Horizonte É Vermelho. Ouvi-los é perceber como o fervor revolucionário era vivido nos anos 1970. “Agora percebemos que estávamos, no fundo, a lutar pelo mesmo”. Não na altura. Aí, discussões e diferenças inconciliáveis podiam manifestar-se na simples ordem de uma frase. Exemplo: “A terra faz o pão”, ou “O pão faz a terra”.
Esses conflitos eram vividos no estúdio – António recordou como a introdução de um violoncelo numa sessão de gravação do GAC provocou debate intenso, resolvido com a proclamação: “Camarada, o violoncelo também é uma arma!”. E eram vividos em casa pelos Moreira. Estavam em barricadas diferentes, mas habitavam a mesma casa. As letras inscritas em papel que mostraram a quem assistia à mesa-redonda eram passadas na mesma máquina de escrever.
Com António e Carlos Moreira, materializaram-se perante nós essas viagens de norte a sul para levar as canções e a revolução ao povo, quer em comícios onde seriam naturalmente bem-vindos, quer, por exemplo, em festas de paróquia, onde a recepção estaria longe de ser calorosa. “Tínhamos que adaptar repertório, se não levávamos na cabeça. Uma coisa era estarmos habituados a estar em minoria, outra coisa era oferecermo-nos à porrada”, recordou Carlos.
Antes do concerto nocturno de despedida, a conferência seria encerrada com chave de ouro com a presença de José Mário Branco. Determinante na história da música portuguesa dos últimos 50 anos, o autor de Margem de Certa Maneira, em conversa moderada por Hugo Castro e Ricardo Andrade, também aluno de doutoramento, mostrou-se um contador de histórias cativante e um professor capaz de explicar com pormenor e sageza os detalhes e processos da sua arte. Falou-nos de como o seu trabalho de produção e composição, a que chama “encenação sonora” e que definiu como “a criação do espaço para a emoção”, emana do teatro e do cinema.
“Tinha que ser para as minhas canções gravadas no estúdio aquilo que o encenador é para os actores: o representante do público futuro, aquele que tenta chegar ao que quer que público sinta”, explicou Branco. E abriu-nos as portas ao processo criativo, revelando episódios deliciosos, como a escova de cabelo (de Zélia Afonso) raspada sobre um timbale utilizada em Coro da Primavera, uma das canções de Cantigas do Maio, ou a utilização de um carrinho de fricção do filho em Por terras de França.
Quando do público lhe perguntaram pelos factores determinantes para a sua formação enquanto músico, identificou três. “As coisas novas que começaram a acontecer na música, como os Beatles e George Martin”, e álbuns como Rubber Soul e Sgt. Peppers, que Sérgio Godinho muito ouvia quando se lhe juntou em Paris. O trabalho feito por Michel Giacometti e Fernando Lopes-Graça na revelação de uma etnografia musical portuguesa distante dos clichés folcloristas do Estado Novo. E “o movimento estudantil e Zeca Afonso”: “Dei cabo da voz até ao meu quarto disco porque queríamos todos imitar o mestre”.
Antes, contara como, para pôr em canção aquilo que tinha de ser dito claramente, sem passar pelas metáforas para enganar a censura, se empenhou numa “guerrilha fonográfica”. Ou seja, contactou amigos e os políticos no exílio que tantas vezes o requisitavam para actuações, e propôs-lhes uma pré-compra de um single que gravaria com o dinheiro assim reunido. Single esse, Ronda do soldadinho, que depois entraria clandestinamente em Portugal, “distribuído como um panfleto”. Isto aconteceu há quatro décadas, mas o descrito por José Mário Branco parece estranhamente familiar. Assemelha-se a uma prática que julgamos muito do nosso tempo pós-internet. Crowdfunding, já ouviram falar?
A tecnologia muda. A música faz-se. As vozes ergueram-se, erguem-se, continuarão a erguer-se.