Uma Polícia Marítima civil

Finalmente o debate irá por termo a um confuso manto legislativo.

Parece finalmente ter-se dado um passo decisivo no sentido de pôr termo a uma questão turbulenta que tem ultimamente marcado a actividade e funcionamento da Polícia Marítima (PM). A problemática incide na insistência de vertente militar – a Marinha – em reivindicar o controlo e o domínio da PM, enquanto força de segurança. A situação veio mesmo a assumir contornos caricatos, denunciados pela ASPPM (Associação Socio Profissional dos Profissionais da Polícia Marítima) a propósito de designações de Marinha, de Autoridade Marítima Nacional ou de Polícia Marítima, apostas indiscriminadamente nas costas desses profissionais, numa confusão de competências e funções. O mais grave é que esta situação representa um desrespeito pela Constituição da República (CR), sob a alegação de fidelidade a uma tradição, incapaz de responder às exigências actualistas de um Estado de Direito Democrático.

Na verdade, a CR é peremptória ao atribuir à Polícia a função de garantir a segurança interna (art.º 272.º.1.) e às Forças Armadas, a defesa nacional com reporte a agressão ou ameaça exterior (art.º 273.º) estando assegurados os mecanismos de sua intervenção no plano interno em situações de excepção. Rejeita-se por isso a tese de um policiamento militarizado em tempo de paz e normalidade social. Qual a mais-valia (para não falar de base legal) de militarizados fiscalizarem: rios e águas interiores marítimas; um pesqueiro transgressor; um iate traficante; uma pesca com rede artesanal; uma praia num dia de veraneio; uma actividade náutica de recreio e investigar crimes?

Dimensionar por isso a PM às suas justas proporções como força de segurança, realçando a sua natureza civil é pois uma tarefa que já há muito se impunha como forma não só de a dignificar autonomizando-a face à Marinha, como em simultâneo reforçar a dignificação desta, ficando responsável à especificidade das suas atribuições como ramo das Forças Armadas. Dizia-se por isso que “um militar na polícia, nem consegue ser bom polícia nem bom militar”.

É por isso de saudar o Projecto de Lei n.º 237/XIII-1ª acabado de apresentar pelo grupo parlamentar do Partido Comunista Português para a aprovação da Orgânica da Polícia Marítima, projecto esse “construído com a colaboração da Associação Sócio Profissional da Polícia Marítima, correspondendo à resolução de uma lacuna existente e a clarificação da natureza da Polícia Marítima”.

O debate proposto na nota preambular, sem por em causa a desmilitarização de funções da PM e a sua incontornável natureza civil, duas grandezas que a CR não deixa abdicar, irá por certo permitir o desanuviamento, a definição de parâmetros e sobretudo a desmontagem de desfocadas balizas, como os de segurança nacional ou o “duplo uso” conceitos com que até ao presente tem sido tratadas questões em matéria de segurança interna do país com particular destaque às questões do mar. Para os agentes da PM terá pois chegado o “momentum” impulsionador para materializar a sua confiança e consciência profissionais para a eficácia e prestígio cada vez maior da sua instituição. Finalmente o debate irá por termo ao confuso manto legislativo caracterizado por uma profusão de diplomas legais extravagantes, de intrigantes interpretações voluntaristas e em muitos casos em rota de colisão com a Constituição da República.

Quebrado o tabu, a solução está à vista.

 

Juiz-conselheiro do STJ, jubilado

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