Lourenço Crespo fez um pequeno monumento pop, cantemos com ele
Nove Canções é o primeiro disco a solo deste cantor e compositor da Cafetra, e é um pequeno monumento pop.
Já tínhamos visto e ouvido Lourenço Crespo em vários sítios e de várias formas, mas nunca assim, a solo, tão na linha da frente, tão compositor e cantor de corpo inteiro.
Ouvimo-lo nos 100 Leio, a fazer da pop detrito e festa lo-fi juntamente com Maria Reis, das Pega Monstro; nos Kimo Ameba, quarteto de fuzz rock da Cafetra, gangue do qual faz parte desde o início; nos Iguanas, ele e Leonardo Bindilatti a sabotar electrónica com ruído caseiro e alucinações de vária espécie; e no último disco de Éme, Último Siso, a tocar teclados. Mas, dizíamos, nunca o tínhamos visto e ouvido assim, como em Nove Canções, o primeiro disco em nome próprio, um pequeno monumento pop, com algumas canções memoráveis lá dentro. Um disco que só podia ser dele, e de mais ninguém (com todas as dúvidas e sobressaltos existenciais que isso implica).
“Não foi o que quis fazer, foi o que precisava de fazer. Precisava de fazer isto sozinho, para provar que dava”, diz Lourenço Crespo, 23 anos, ainda a tentar lidar com a decisão de uma vida – a de fazer música a full time num país e numa Europa de presente e futuro muito duvidosos, muito pouco cor-de-rosa. “Antes era mais à vontade, preocupava-me menos com o que fazia, mas agora estou com a neura”, confessa. “Estou bué preocupado porque decidi que era isto que queria fazer. Tomei esta decisão e tenho mesmo de ser bom. E há a questão do dinheiro, claro… Mas também se tivesse escolhido outra coisa ia chorar todas as noites.”
Esta ansiedade geracional atravessa Nove Canções (“os meus anos a somar/ vinte e tal e a contar/ vem o medo/ ao achar/ não tenho nada pra dar”, ouvimos, por exemplo, em Fantasma). É um disco entre o desassossego e a celebração (e isso nota-se nas linhas de teclado, entre a luz radiante e a sombra), de um miúdo de 23 anos que canta a Lisboa do seu tempo (das farturas do Carlitos aos “prédios a apertar”, sem esquecer “as betas a caminho do Santo António”), os amigos, os amores, os corações partidos e as emoções a desabar, com letras que revelam uma agilidade especial para brincar à língua portuguesa (vejamos a deliciosa auto-irrisão de Brincar Aos Cafés: “sinto a falta de alguém/ vesti-me a matar para ninguém/ só o espelho me retribui um ‘ui que pinta!’”).
Nove Canções é a digressão emocional de Lourenço Crespo, a sua maneira de drenar impurezas. Um documento pessoal, mas inevitavelmente colectivo. “Precisava de desabafar. Este disco é a história da minha vida enquanto estava a fazê-lo. É ter 20 e poucos anos em Lisboa, é ter esta idade neste sítio. Acho que dá para muita gente da minha idade se identificar.” Nove Canções é, portanto, Lourenço Crespo sem filtros. “Em Iguanas sou o que queria ser. Aqui sou o que sou” – e isso é o mais complicado, como canta em Penantes (“se eu quisesse era quem quisesse/ se eu quisesse era o Kanye West/ vou ser só eu/ o mais difícil é ser quem sou”). “Quando vejo a Beyoncé ou a Mariah Carey gostava bué de ser como elas. Quando vejo o B Fachada ou assim tenho vontade de ser autor, de ser eu”, acrescenta.
A referência a Beyoncé e a Mariah Carey – a quem podíamos juntar Ariana Grande, a paixão do momento de Lourenço – não sai fora do contexto. Boa parte da sua dieta musical é feita à base de pop americana e r&b, e isso reflecte-se na sua música: nas melodias sacarinas e polposas, na ginga contagiante das linhas de teclado (como em Só Aparece, canção triunfante que abre o álbum, tiro e queda) e na própria voz de Lourenço, que, neste disco, ouvimos finalmente na sua plenitude, expansiva, cheia de audácia rítmica (como em Novo Par, outro clássico instantâneo, a comprovar no concerto de 2 de Julho no Sarau Longo da Filho Único, Ateneu de Madredeus).
São canções que se colam ao ouvido, mas sem deixarem de semear alguma estranheza, muito própria: como Essa Mulher, em que o teclado parece transfigurar-se num acordeão (nesta e noutras canções há diálogos inegáveis com a música popular portuguesa dos anos 60 e 70), ou Alvalade, a capella. “Fiz a Alvalade porque gosto de cantar. Canto bué na rua com o mp3, nos concertos de outras pessoas, em todo o lado.”
B Fachada é outra referência incontornável: na forma de cantar, no fraseado, na forma de arquitectar canções. “Estive a gravar o disco do Éme com ele e percebi como é que as coisas devem ser feitas, como as coisas têm de se unir numa canção”, aponta o cantautor, referindo ainda a influência de Éme neste disco, produzido por outro colega de editora, Leonardo Bindilatti. “Os meus amigos são quem mais importa e me influencia”, diz. O modus operandi de Fachada, que deve aos cantores-trabalhadores dos anos 70 (José Afonso, Sérgio Godinho, Adriano Correia de Oliveira), também acabou por direccionar Lourenço. “O B trabalha imenso, é muito empenhado, e foi isso que fiz com o meu disco. Foi trabalhar, trabalhar, trabalhar, não deixar nada a meio, acabar as músicas.”
“Dois refrões por mês/ à espera da minha vez.” Com Nove Canções, e apesar de todas as neuras, a vez de Lourenço Crespo chegou. Celebremos.