40% dos homicídios conjugais desencadeados por vítima querer pôr fim à relação
Estudo avaliativo das decisões judiciais proferidas entre 2007 e 2012 apresentado esta terça-feira na Universidade do Porto.
Um excerto de uma sentença pode fazer a síntese do estudo sobre homicídios conjugais apresentado esta terça-feira na Universidade do Porto: “A vítima disse ao arguido que pretendia terminar o relacionamento. Então, o arguido agarrou uma faca de cozinha, que se encontrava em cima da mesa, e espetou-a no lado direito do abdómen da vítima. A vítima levantou-se e o arguido desferiu-lhe outro golpe, atingindo-lhe o pescoço, enquanto dizia ‘não és minha, não és de ninguém’.”
A Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género (CIG) pediu a uma equipa da Escola de Criminologia da Faculdade de Direito da Universidade do Porto que se debruçasse sobre as 237 sentenças de homicídio conjugal consumado e tentado que a Direcção Geral da Política de Justiça dizia terem sido proferidas entre 2007 e 2012 por tribunais judiciais de primeira instância ou superiores.
Os investigadores — Cândido Agra, Jorge Quintas, Pedro Sousa e André Lamas Leite — conseguiram reunir 197 decisões judiciais. Sujeitaram-nas a uma profunda análise de conteúdo e confirmaram que quem mata alega várias razões, mas, sobretudo, as que denotam sentimento de posse. Dois em cada cinco homicídios conjugais ocorreram por a vítima querer pôr fim à relação; e um em cada cinco por o homicida sentir ciúmes ou suspeitar ou ter conhecimento de que a vítima tinha uma relação extraconjugal. Muitas vezes (48,6%) a relação até já tinha terminado.
A “situação de ruptura relacional corresponde a um período particularmente sensível”, avisam os investigadores. Por isso mesmo “deve motivar especial atenção” por parte da potencial vítima, mas também das estruturas policiais, judiciais e sociais que possam ser chamadas a intervir.
Homicida é quase sempre um homem
O livro Homicídios Conjugais vem reforçar a voz dos vários estudiosos e activistas que ao longo dos últimos anos têm encaixado este crime nas relações de poder e no sentimento de posse. Só que este não é um estudo sobre o fenómeno em si, é um estudo sobre “o modo como os arestos o julgaram”, ressalva Pedro Sousa, professor auxiliar da Faculdade de Direito.
O homicida é quase sempre um homem (90,9%) e a vítima é quase sempre uma mulher (89,8). O homicídio entre casais do mesmo sexo representa apenas 1% das ocorrências.
Os investigadores depararam-se com uma elevada incidência de crimes ocorridos nos primeiros anos de relação (39,6% nos primeiros cinco anos), o que não excluiu a grande expressão de homicídios registados ao fim de muitos anos (35,6% acima de 15 anos). Na maior parte dos casos, havia filhos.
Seriam relações turbulentas. Em metade das decisões judiciais (49,7%) deu-se como provado que o homicida já tinha sido violento com a vítima. Também houve casos em que o homicida é que era vítima de violência (7,1%). É nesse cenário, explica Pedro Sousa, que se encontram quase todas as mulheres condenadas por homicídio conjugal. Cometeram o crime depois de anos de maus tratos. Não é por acaso que as penas a que são sujeitas tendem a ser mais baixas.
Voltando às chamadas motivações imediatas/factores desencadeadores, verifica-se que um em cada cinco homicídios aconteceram no seio de uma discussão. As referências concretas a violência doméstica são reduzidas (1,7%). Só que isso, explica Pedro Sousa, não invalida o que atrás foi escrito. Essa grelha está feita com base no que em cada sentença o magistrado julgou ser o factor principal.
Na maior parte das vezes, a notícia da violência doméstica nunca tinha chegado às autoridades. Só em 18,3% dos casos se poderá dizer o contrário. E mais reduzido ainda era o número de condenações que existiam por violência doméstica no momento do homicídio (4,6%).
Essa disparidade não é irrelevante. “O fenómeno conhecido por ‘homicídio conjugal’ sugere, na análise da amostra recolhida, uma espécie de um ‘efeito de escalada’ em cerca de metade das decisões judiciais em que existia referência a eventos anteriores de violência exercida contra o/a ofendido/a”, refere o estudo, já no final. E é tendo em conta que “a morte surge, muitas vezes, como o final trágico de uma história de abusos anteriores, amiúde com duração de anos”, que se lhes afigura fundamental perceber que “o combate ao fenómeno está intimamente relacionado com a melhoria das condições de prevenção e repressão da violência doméstica”.
Motivar as vítimas para a apresentação de queixa
Os investigadores não recomendam a autonomização do crime de homicídio conjugal, na linha do que tem sido defendido por diversos activistas dos direitos das mulheres. Sublinham a importância de “motivar as vítimas e testemunhas para a apresentação de queixa/denúncia”. E aconselham maior prevenção no sistema de justiça, no sistema de saúde e nas redes de apoio de vítimas de violência doméstica”.
Parece-lhes que, apesar dos esforços legislativos, “a realidade prática denota a necessidade dos/as magistrados/as do Ministério Público e dos/as magistrados/as judiciais, bem como dos órgãos de polícia criminal, continuarem a desenvolver os esforços de acompanhamento dos processos denunciados, nomeadamente aplicando as medidas de coacção processual de afastamento do/a agente em relação à vítima, protegendo as vítimas, fomentando a apresentação de queixa por parte de outras vítimas e, se necessário, promovendo o tratamento do/a agressor/a”.
No eixo da prevenção, defendem ainda, “é urgente continuar com as acções de sensibilização da população em geral e, em especial, dos/as jovens para a problemática geral da violência nas relações de intimidade e, como seu corolário letal em várias hipóteses, do homicídio conjugal”.