1. António Costa resolveu fazer dois exercícios de risco durante o Congresso do PS, tirando-o da zona de conforto habitual dos congressos partidários e, em primeiro lugar, dos que estão no poder, como é o caso. O primeiro exercício é o mais simples e menos arriscado, mas ainda assim importante. O seu discurso de abertura tinha uma mensagem essencial: as promessas que fez a partir do programa que apresentou aos eleitores foram ou estão a ser cumpridas. Parece banal, mas não é. Habituámo-nos (cá e por essa Europa fora) a que quase nada do que se diz nas campanhas seja para valer. A justificação é sempre a mesma: a herança do governo anterior, inesperadas mudanças na cena internacional ou a culpa não é nossa, é de Bruxelas. Apenas dois exemplos. Em 2011, Pedro Passos Coelho fez uma campanha em que, já com o conhecimento do “programa de ajustamento”, ainda conseguiu dizer que não ia cortar o subsídio de Natal a ninguém ou aumentar os impostos. Em França, François Hollande não levou muito tempo a abandonar as promessas bastante radicais com que venceu Sarkozy em 2012: entre elas, o ataque às instituições financeiras e às grandes multinacionais (através dos impostos), e a rejeição do Pacto Orçamental. A meio do caminho, inverteu a marcha e apresentou um programa mais moderado, ditado pela necessidade de criar as condições para melhorar a competitividade da economia francesa, incluindo, por exemplo, uma reforma das leis laborais que está hoje a pôr a França em pé de guerra. Chamou o mais liberal dos socialistas franceses, Manuel Valls, para desempenhar a missão. Um dos colunistas habituais do Le Monde defendia com bastante cinismo mas alguma graça que era uma sorte que a maioria dos governos franceses não cumprisse as promessas eleitorais. O problema é que essa é uma das razões pelas quais a política e os políticos estão hoje desacreditados nas democracias ocidentais, ao ponto de abrir cada vez mais espaço às propostas populistas que se alimentam da revolta dos eleitores contra o sistema. António Costa é teimoso, toda a gente sabe. Há promessas que fez que são difíceis de compreender (por exemplo, as 35 horas ou o IVA da restauração) e outras acabaram por ser desvirtuadas pelo preço que teve de pagar aos partidos à sua esquerda. Mas levou a peito o cumprimento de muitas delas e na noite de sexta-feira enumerou-as uma a uma. O seu objectivo de médio prazo é provar que há alternativa no quadro europeu. Colocou a fasquia mais alta e é por aí que será avaliado. Sabe que os tempos que se avizinham serão mais duros do que os que decorreram desde a tomada de posse do Governo. A economia internacional dá sinais preocupantes. A economia europeia ainda não saiu completamente do risco de estagnação e de deflação. As duas coisas podem afectar a economia portuguesa, cujo crescimento é vital para a redução do défice e da dívida. Em Berlim ou no Eurogrupo ninguém dá mostras de olhar com mais compreensão as infinitas medidas de austeridade impostas aos países da periferia, transformadas agora numa ameaça de sanções, que não se percebe se resultam de uma mera questão ideológica (mais contra este governo, do que com o que foi responsável pelo desvio do défice), ou de pura indiferença na aplicação das regras. O próximo grande desafio do Governo é percorrer este caminho de obstáculos sem perder a credibilidade interna nem romper com Bruxelas.
2. E aqui chegamos ao segundo exercício de risco, este sim verdadeiramente desafiador. Convidar Pacheco Pereira, Ana Drago e, do lado socialista, Pedro Silva Pereira para iniciar os trabalhos de ontem com um debate totalmente livre sobre o futuro do socialismo na Europa, foi tudo o que os Congressos partidários não costumam ser. Não é só o facto de a Europa ser a maior fractura política da geringonça. O debate europeu em Portugal raramente sai dos lugares comuns, limitando-se a enumerar os grandes princípios do nosso compromisso com a Europa. Pacheco Pereira, como era previsível, colocou em cima da mesa questões muito mais difíceis, ainda que fundamentais, e as suas respostsa não são as do primeiro-ministro. Concordando ou não com ele, disse muitas coisas que muita gente pensa e que não se atreve a dizer. Tocou em dois ou três pontos essenciais. A questão da democracia num quadro de partilha de soberania em que os cidadãos se confrontam com o facto de o seu voto não ter valor. O papel da social-democracia nestes tempos conturbados em que a receita europeia é ditada por um pensamento conservador de direita ao qual, diz ele, o centro-esquerda se rendeu, abandonando a essência do seu programa ideológico: combater as desigualdades. A política de “punição” europeia, independentemente das suas consequências económicas e políticas. Pacheco Pereira nunca teve uma grande simpatia pela integração europeia, na forma como aconteceu, e é esse ainda o seu ponto de partida para uma visão mais soberanista. Mas as perguntas que faz merecem absoluta atenção. A questão da democracia, creio que não advém tanto da partilha de soberania e da fiscalização das contas públicas (como lembrou Silva Pereira, não há zonas monetárias sem regras comuns), mas da imposição de soluções sem alternativa. O problema é outro e esse sim prende-se com a social-democracia. A globalização alterou radicalmente as regras do jogo político e económico mundial, afectando duramente as democracias desenvolvidas do Ocidente, cuja riqueza pronta a ser distribuída com equidade também provinha do total domínio da economia mundial. É um problema que está longe de estar resolvido e que, à falta de uma resposta de centro-esquerda, alimenta toda a espécie de populismos, de nacionalismos e de proteccionismos. Durante duas décadas, o bom comportamento das economias ocidentais e a facilidade do crédito chegaram à social-democracia para combater (ou disfarçar) a crescente desigualdade que as novas condições da concorrência internacional traziam consigo. A crise financeira mudou tudo. Mas não vale a pena atribuir as culpas todas à Terceira-Via, como agora está na moda. Ela teve o mérito de tentar adaptar a protecção social e o combate às desigualdades ao reino dos mercados globalizados, preocupou-se com a necessidade de fornecer instrumentos aos que ficaram para trás, estabeleceu uma relação directa entre benefícios e responsabilidades. Não insistiu como devia na necessidade de regular os mercados e é verdade que falhou em grande medida. Mas não é certamente o regresso ao passado que pode devolver-lhe um papel político fundamental nas democracias desenvolvidas. Olhando à nossa volta, é fácil compreender que é no quadro europeu que se podem encontrar alternativas que mostrem aos cidadãos que não são os mercados que ganham sempre e que a Europa é suficientemente grande e rica para poder inverter essa lógica. Tarefa ciclópica? Certamente. Pedro Silva Pereira contrabalançou as ideias de Pacheco Pereira, lembrando que é conveniente não deitar fora o bebé com a água do banho. Se a Europa se deixar morrer de morte lenta ou pura e simplesmente implodir, todos os países europeus vão perder. Mas os que são mais pequenos e mais frágeis perdem duplamente. Não há jangadas de pedra no mundo em que vivemos.
3. O mérito de António Costa foi justamente não temer este debate, em que as razões de Pacheco Pereira são porventura mais fáceis de aplaudir do que as dele. Mas há uma coisa em comum. A Europa não sobreviverá se não abandonar rapidamente a ideia de que uns mandam e outros obedecem. Que uns decidem em função dos seus interesses e do seu poder e outros são cobaias obedientes. A Europa atravessa uma crise profunda. O melhor que há a fazer é tentar salvá-la de um triste destino. Para isso todos têm de contribuir.