Na guerra morre-se muitas vezes
Às vezes os fantasmas são vampiros, outras são pessoas. Nova novela gráfica de Filipe Melo e Juan Cavia, a dupla de Dog Mendonça e PizzaBoy, leva-nos à Guiné da Guerra Colonial. Uma história que é ficção mas podia ter acontecido (e se calhar aconteceu).
S. Domingos, Rio Cacheu, Guiné. Dezembro de 1972, já muito perto do Natal. Nove homens entram no mato com uma missão – localizar uma base do Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo-Verde (PAIGC) no Senegal, junto à fronteira, e comunicar as suas coordenadas via rádio antes de abandonar o local
É nas conversas que mantêm enquanto progridem no terreno que ficamos a conhecer, pouco a pouco, estes militares portugueses, uns na guerra a contragosto, outros a verem nela a única coisa que resta quando o regresso a casa parece impossível ao fim de três comissões de serviço. Voltar para quê quando a pessoa que se era já não existe e, por isso, quem a espera nunca poderá reconhecê-la como sua? “A culpa é disto tudo. Deste sítio, desta guerra. Nem devíamos estar aqui sequer”, diz Machado, um dos soldados (se esta história tivesse um herói – que não tem – seria o Machado).
Para muitos seria de esperar que Os Vampiros, novela gráfica que a editora Tinta da China lança amanhã no Festival de BD de Beja, tivesse um herói. Costuma ser assim nos livros de banda-desenhada, é verdade, mas Filipe Melo, o argumentista, não viu motivos para isso. “Parece-me esquisito falar de heróis numa guerra, mesmo que as condecorações militares contrariem esta ideia”, diz ao Ípsilon, um dia depois de ter entregue o livro na gráfica que vai imprimir uma primeira edição de dois mil exemplares (o volume tem 230 páginas de desenhos originais e um preço de referência de 24,90 euros). “As coisas nunca são a preto e branco numa guerra, como geralmente não são em lado nenhum. São mais complicadas. E os heróis são, muitas vezes, personagens pouco complexas, como se não fossem pessoas, não tivessem dúvidas nem hesitações. E eu quis escrever uma história sobre pessoas, sobre a paranóia, o medo, sobre como insistimos em não aprender.”
Atravessamos os três capítulos do livro cujo título mistura três referências – as criaturas mitológicas, o grupo de comandos com o mesmo nome e a canção homónima de José Afonso que a censura proibiu no início dos anos 1960 – e não há como evitar entrar no jogo da ficção (de repente damos por nós a imaginar ‘passados’ para cada um dos militares portugueses e até para o guia, Sanhá).
O traço que Melo e Juan Cavia – o desenhador argentino com quem o português já assina a trilogia das aventuras de Dog Mendonça e PizzaBoy, outra novela gráfica de grande sucesso que já vendeu 18 mil exemplares em Portugal e que nos Estados Unidos é editada pela independente Dark Horse Comics – conferem a cada uma das personagens é bem vincado. A dupla desenha-as por fora e por dentro e é por isso que, passadas apenas algumas páginas, se reconhece facilmente a figura ausente de Machado, a postura sempre agressiva do sargento Santos, “o maior carniceiro da Guiné”, o jeito meio tímido meio apavorado do “dr.” Agostinho, de quem poucos esperarão tamanha coragem, a barba forte do Tondela, um dos mais críticos. “É um negócio. Esta puta desta guerra é um negócio”, diz, referindo-se ao proveito que dela tiram as grandes empresas como a Companhia União Fabril, gigante industrial do Estado Novo: “Tem os barcos que nos trazem até cá, tem a comida que comemos… Quando nos mandam para casa num saco, aposto que também é um saco da CUF!”
Na cabeça de Filipe Melo Os Vampiros começou por ser uma história de terror de contornos muito definidos, clássicos. Haveria suspense, criaturas fantásticas e momentos absolutamente surpreendentes em que o espectador – sim, é verdade, também começou por ser um guião para um filme antes de se transformar num livro – ficaria agarrado à cadeira.
“A minha ideia era escrever uma história que pudesse adaptar facilmente ao cinema, que fosse barata de produzir. Mas depois as coisas foram mudando”, diz. As coisas foram mudando à medida que Filipe Melo se viu enredado no trabalho de pesquisa, que passou pelo visionamento de uma série de filmes, uns explorando a ideia de perseguição e a urgência de sobreviver nos mais diversos cenários, outros mais orientados para a narrativa de “terror puro” – do Rio Bravo (1959) de Howard Hawks ao Southern Comfort (1981) de Walter Hill, passando por A Noite dos Mortos-Vivos (1968) de George Romero e por Fim-de-semana Alucinante (1972) de John Boorman, títulos de culto, e mais recentemente por The Descent (2005) de Neil Marshall –, e por outras fontes. Incluindo as memórias de Fernando Líbano, um ex-combatente que canta fado e partilhou com o autor a sua experiência no Ultramar. “Eu chegava a ligar-lhe às onze da noite, quando estava a escrever, a fazer-lhe perguntas que, imagino, lhe pareciam estapafúrdias do género: ‘O que é que chamavam ao socorrista? Enfermeiro, ‘doutor’ como nos filmes? E ele respondia, sempre com muita paciência.”
Paulo Costa, um dos donos da loja BDMania, foi outro dos consultores de Os Vampiros. “O Paulo tem um mestrado em estudos militares e foi por causa dele que o Juan teve de redesenhar as golas das fardas e outros pormenores.” Foi também nos detalhes que se prendeu a conversa com a filha de Amílcar Cabral, líder do PAIGC: “Eu queria que me desse a sua visão das coisas e ela estava mais preocupada com o facto de as bases do PAIGC não terem as lâmpadas fluorescentes que o Juan tinha desenhado.”
Sensação de veracidade
Filipe Melo garante que não andou obcecado com o rigor histórico, mas que fez questão que houvesse no livro uma sensação de veracidade: “Gosto de pensar que, se alguém que combateu nas antigas colónias pegar nesta história pode relacionar-se facilmente com ela, lê-la com alguma familiaridade, mesmo que seja a partir de coisas que preferia ter esquecido ou de outras de que só ouviu falar.”
Coincidência ou não, o episódio ficcionado em que o livro se concentra acontece numa área geográfica e num momento no tempo particularmente decisivo no cenário de guerra da Guiné. No final de 1972, a região de Cacheu, no Norte do país, tinha já ali bem perto, do outro lado da fronteira, importantes bases de apoio logístico do PAIGC, lembra ao Ípsilon António Duarte Silva, investigador convidado do Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa. Algumas funcionando como hospitais, com um corpo médico que integrava muitos cubanos que se tinham juntado à luta pela independência.
“Esta é também uma altura muito particular, com o agravamento crescente da situação político-militar, que viria a dar origem aos grandes combates do início de 73”, diz ao Ípsilon este investigador que é também o autor de A Independência da Guiné-Bissau e a Descolonização Portuguesa (Ed. Afrontamento, 1997). Amílcar Cabral andava a recolher apoios internacionais, sobretudo junto das Nações Unidas, preparando a declaração unilateral de independência, que viria a acontecer em Setembro de 1973, já depois da sua morte (foi assassinado a 20 de Janeiro).
“Esta fase é de ruptura e de transição. O Senegal de [Léopold Sédar] Senghor já apoiava abertamente o PAIGC e os combates contra as tropas portuguesas intensificavam-se.”
Melo sabe bem que a Guiné-Bissau é tido como o mais violento dos teatros de operações da Guerra Colonial, mas diz que isso não foi determinante para a ter escolhido como cenário. “As coisas que fiz antes na BD deixavam pouco espaço à imaginação. Aqui quis que fosse o contrário.” Para construir esta narrativa com uma estrutura clássica, o autor leu vários títulos académicos mas também se baseou em muitas histórias verdadeiras que, por vezes, parecem mais irreais do que qualquer episódio que tivesse nascido apenas da sua imaginação: “Quando alguém nos diz que, numa estrada, viu vacas a explodirem por todo o lado, com os soldados a não conseguirem fazer outra coisa que não rir, não podemos julgar. A guerra está cheia de cenas surreais em que as pessoas descobrem que são capazes de coisas incríveis.”
Filipe Melo, 38 anos, não tem ninguém próximo que tenha estado na guerra colonial, mas o contacto que manteve com ex-combatentes (parte da pesquisa passou por mais de 50 horas de testemunhos) e os muitos relatos que leu nas páginas do Correio da Manhã, “genuínos, com zero bullshit”, fizeram com que se apercebesse que há uma diferença enorme entre as pessoas que estiveram nas ex-colónias no início do conflito e as que estiveram no fim, quando a violência era ainda maior. “É claro que tive medo de pegar no tema. Sobretudo porque, como quase toda a gente da minha geração, tinha um conhecimento muito superficial sobre o que se passou. Aprendi muito neste processo, mas sempre com receio de não aproveitar suficientemente o tema, com receio de errar.”
O álbum que é agora lançado resulta de “um tremendo esforço de concretização”. Foram seis anos de pesquisa e execução, seis anos em que o projecto chegou a ir parar à gaveta, de onde só saiu porque Cavia convenceu Melo que era possível concretizá-lo. E, para isso, foram precisas dezenas e dezenas de emails, centenas de horas no Skype em que ambos discutiram a história e a forma como devia ser contada, com o argumentista em Lisboa e o desenhador, “extraordinário narrador visual”, em Buenos Aires e a diferença horária a complicar. Cada página demorou dois dias a ser feita, isto sem contar com os acertos e correcções, explica o autor. “Pensei que ia simplesmente escrever sobre vampiros e acabei a fazer uma coisa mais complexa e muito mais assustadora.” Inicialmente as personagens eram menos subtis – “o mau era mesmo mau, o básico era mesmo básico” –, mas depois foram-se transformando. “Sempre achei que isso das personagens ganharem vida própria era uma treta de escritor, mas acho que isso aqui aconteceu. De repente já sabemos como é que elas vão falar, antecipamos as suas reacções. E se isso não acontece é porque as personagens não são boas.”
Música, cinema, BD
Para as Finanças é músico, mas Filipe Melo é muitas outras coisas. Além de professor na Escola Superior de Música de Lisboa, compositor, arranjador, pianista – já trabalhou com Carlos do Carmo, Camané, GNR, Legendary Tigerman, Deolinda ou Old Jerusalem - e autor de BD, escreveu para televisão (a série Um Mundo Catita, com Manuel João Vieira, para a RTP ) e participa em espectáculos de palco (Deixem o Pimba em Paz, com o humorista Bruno Nogueira e Manuela Azevedo, vocalista dos Clã). E fez cinema, com destaque para a curta com que ganhou o prémio do Fantasporto em 2004 e o europeu Méliès d’Or – I’ll See You in My Dreams. Foi na exibição desta curta-metragem que se cruzou pela primeira vez com o trabalho de Juan Cavia.
Argumentista e desenhador só se conheceram pessoalmente no lançamento do primeiro livro da trilogia Dog Mendonça e PizzaBoy (2010), e mantêm hoje uma amizade que lhes permite trabalhar sem barreiras, diz Melo. “Eu, que faço os desenhos mais horríveis do mundo, sou capaz de passar duas semanas a chatear o Juan por causa de uma polaroid que acho que ele não fez bem. E o Juan é capaz de me mandar emails de várias páginas a explicar porque é que esta personagem não diria isto ou aquilo naquele momento. O Juan não deixa passar um argumento mau.”
Foi assim nos três volumes das aventuras de Dog Mendonça, ex-lobisomem alcoólico de meia-idade, e foi assim n’Os Vampiros, livro em que se sente o seu fascínio pelo cinema – foi através dele que chegou à BD – e em particular pelo norte-americano Quentin Tarantino. Só lhe falta, aliás, fazer uma vénia antes de falar sobre o que o atrai no realizador de Pulp Fiction, Sacanas Sem Lei e Os Oito Odiados. “O Tarantino tem diálogos que são tratados de tensão. E o que interessa sempre nos seus filmes é a história, que ele conta com um talento e uma liberdade que são extraordinários”, diz o músico-argumentista que descobriu o piano depois de, aos 15 anos, ter sido detido por pirataria informática.
“Na guerra morre-se muitas vezes e de muitas maneiras, mas só uma delas é a última”, diz o argumentista, em jeito de conclusão. No último dos três capítulos de Os Vampiros, numa sala fechada com um rádio de onde sai uma canção de Gianni Morandi, dois homens, Machado e um soldado do PAIGC, trocam fotografias e através delas mostram que as vidas de um e do outro lado desta guerra, como em todas, podem ser mais parecidas do que gostaríamos de admitir.
Para os que, ao fim de 250 páginas, ainda tiverem dúvidas, “owenga” quer dizer “vampiro”.