Hillary não pode voltar a chorar
1. Há oito anos, quando acabava de vencer por uma margem mínima as primárias de New Hampshire, Hillary Clinton, então candidata à Casa Branca, deixou cair algumas lágrimas perante uma pergunta perfeitamente ingénua de uma jornalista. Como é que consegue manter-se sempre assim, penteada, bem arranjada, serena? O que é que Hillary poderia dizer? Que era o que as pessoas esperavam dela, pelo facto de ser uma mulher? Os estrategos da sua campanha ficaram preocupados, porque não é suposto que um comandante em chefe chore. Talvez nesse momento, além da sua condição de mulher, lhe tenha passado pela cabeça a história da sua vida: nada nunca lhe foi oferecido de mão beijada. Nesse dia muito frio de Janeiro, já tinha intuído que, ao contrário de todas as expectativas, a sua caminhada em direcção à Convenção Democrata seria afinal um caminho cheio de obstáculos. O fenómeno Obama, que pouca gente vira chegar, acabava de se revelar em toda a sua dimensão. Dois meses antes, no caucus de Iowa, um Estado maioritariamente branco, conservador e gelado, Obama ficou em primeiro lugar. Hillary apresentava-se como a candidata da transição entre os desastres de Bush e o regresso à normalidade. Não percebeu que, naquela altura, os americanos queriam mesmo mudar. Achou que a sua candidatura seria invencível e que a longa história da parceria “Bill e Hillary” seria suficiente para um último capítulo de “Hillary e Bill”. Apostou na “experiência” e na “competência” e no vasto conhecimento do mundo que o seu lugar de primeira-dama lhe reservara. Jonathan Alter escreveu nessa altura na Newsweek que as eleições americanas se jogam sempre entre o medo e a esperança. Ela apostou no medo. Bill tinha apostado na esperança. Tal como Obama. A história de ambos foi sempre assim. Para Bill tudo parecia ser fácil. Para ela, tudo tinha de ser conseguido à custa de um enorme esforço. Quando chegava da escola com uma caderneta só com notas A, ouvia o pai dizer-lhe que a escola devia ser muito pouco exigente. Abdicou de muita coisa para levar Bill ao Governo do Arkansas e, depois, à Casa Branca. O antigo Presidente costumava dizer que os eleitores “compravam dois pelo preço de um”. Mas não abdicou do seu estatuto de mulher independente numa parceria entre iguais. Enfrentou com uma serenidade sobre-humana os escândalos do marido. Alguns verdadeiros e outros falsos, alimentados por uma horda de republicanos que odiavam a geração que representavam, contra guerra do Vietname, pela libertação da mulher, pela igualdade entre sexos.
2. Em 2008, depois dos dois mandatos de Bush que terminaram com uma brutal crise financeira e com a destruição da imagem da América no mundo, pensou que chegara finalmente o momento de conseguir aquilo que merecia. Já sabemos o resto da história. Ninguém conseguiu resistir a Obama. Ela própria foi, durante o seu primeiro mandato, uma fiel e competente secretária de Estado, ajudando a moldar uma nova política externa, muito mais assente na cooperação com os aliados e no conceito que ela própria criou de smart power. Foi ela que executou a viragem para a Ásia, que reabriu as negociações com Moscovo, que restaurou as relações de familiaridade com a Europa. Algumas vezes, as suas posições divergiram das do Presidente, mas isso nunca foi um problema. Se Obama devolveu à América o seu lado mais luminoso, Hillary completou o trabalho no terreno. Na China, a sua firmeza foi sempre servida com “elegância e sem provocações desnecessárias”, diz Michael O’Hanelon, da Brookings. Contrariou o Presidente talvez pela única vez quando, numa visita a Pequim, conseguiu vencer uma luta difícil pela libertação de um dissidente cego, que pretendia levar com ela. “Alguns dos conselheiros do Presidente preocupavam-se com o facto de estar a destruir a relação com a China. Mas ninguém estava preparado para ficar responsável por o deixar entregue ao seu destino", escreve no seu livro de memórias Hard Choices.
3. Em 2014, decidiu tentar a sua última oportunidade. Quarenta anos de exposição pública e de actividade política deixaram-lhe profundas cicatrizes, alimentando a desconfiança de muitos eleitores americanos, que a acham demasiado arrogante e parte da “realeza política” que domina Washington e da qual estão fartos. Mesmo os seus apoiantes acusam-na de não conseguir dar emoção e calor à sua campanha. Não possui o carisma de Obama, nem o de Bill. Quis reconstruir a sua imagem política com uma campanha de maior proximidade dos eleitores, oferecendo-lhes o protagonismo. O vídeo de três minutos com que iniciou a corrida resume o seu programa: “Os heróis são as famílias de todas as cores e feitio.” A classe média lutadora que ela quer compensar. Mas, mais uma vez, a história foi-lhe adversa, exigindo-lhe um trabalho insano até chegar à convenção. Ninguém alguma vez admitiu que Bernie Sanders, que quer fazer uma “revolução” e ousa declarar-se socialista, chegaria onde chegou, numa constante guerra de desgaste contra a sua candidatura. Tal como ninguém conseguiu prever que Donald Trump se preparava para vencer as primárias dos republicanos. Trump começou por ser um entretenimento, mesmo que desagradável. Jeb Bush, igualmente da realeza política, seria o candidato moderado, com algumas cedências ao Tea Party, como se o movimento populista não dominasse já o partido. Nem ela nem ninguém anteciparam o que aconteceu nos meses seguintes. Há enormes diferenças entre Sanders e Trump, mas também muito em comum: o proteccionismo contra a globalização; o desinvestimento na política externa e nas alianças em que ela assenta, da Ásia à Europa, uma guerra desenfreada ao sistema de Washington. Esta América sempre existiu, mas nunca foi suficientemente forte (pelo menos desde a II Guerra) para determinar a sua relação com o mundo. Hoje, parece ameaçadora. Mesmo que estas sejam as eleições do medo, o medo pode acabar por ajudar Hillary.
4. O problema é que já ninguém descarta com certeza matemática uma vitória de Trump em Novembro que seria um pesadelo para a América e um pesadelo para o mundo. Nas últimas duas décadas, o mundo sofreu por duas vezes o impacte da mudança da política externa americana, a partir de dois acontecimentos que ninguém antecipou. Primeiro, foi o 11 de Setembro. Depois, a queda do Lehman Brothers, que levou a economia global a uma grande recessão. Como lembrava recentemente Anne Marie Le Gloennac numa entrevista ao PÚBLICO, a eleição de Trump pode funcionar como um “cisne negro”, algo de totalmente inesperado, que lançaria o mundo numa enorme incerteza e insegurança. Hillary é hoje o único obstáculo a essa descida aos infernos. Em 2008, com Obama ou John McCain (apesar de Palin), o resultado das presidenciais não poria nunca em causa o papel essencial dos EUA no mundo. É essa a assustadora novidade desta eleição e a sua enorme importância. Só Hillary afastará um cenário no qual ninguém quer ainda pensar. Desta vez, apenas pode chorar de felicidade. E, já agora, depois de um presidente negro, chegou a altura de quebrar o último tecto de vidro, dando a uma mulher o lugar de “a mais poderosa do mundo”.