Enquanto não acaba com Verhoeven e Asghar Farhadi, na competição em Cannes vale tudo até cuspir olhos
Em vésperas de tudo terminar no festival, nada acabou. Os filmes realizados por Nicolas Winding Refn e Sean Penn foram vaiados mas espera-se um desfecho à altura com Le Client e Elle, os dois últimos filmes na competição
À espera do dénouement : a competição da 69. ª Edição do Festival de Cannes deu um ar de calculada e produtiva mistura de experiência e de mobiliário como zona de conforto – Aquarius, de Kleber Mendonça Filho, Toni Erdman, de Maren Ade, Paterson, de Jarmusch, American Honey, de Andrea Arnold, Ma Loute de Bruno Dumont, I, Daniel Blake, de Ken Loach, Ma’Rosa, de Brillante Mendoza ou os coriáceos guardiões da moral que foram os romenos Cristi Puiu (Sieranevada) e Cristian Mungiu (Graduation), são os mais relevantes.
Mas algo nos diz que, em vésperas de tudo terminar, nada acabou. Está-se à espera de um desfecho nos dois últimos filmes programados, que nunca são colocados no final por acaso: Le Client, de Asghar Farhadi (dois anos depois de O Passado, prémio de interpretação a Bérénice Bejo) e Elle, de Paul Verhoeven, que já abriu o festival com Instinto Fatal, em 1992, mas é a primeira vez que aparece em competição, e num momento singular e surpreendente de entronização da sua obra.
O filme do iraniano, que já venceu o Óscar do Melhor filme Estrangeiro (Uma Separação, em 2012), continua a sua investigação de cenas de um casamento: a implosão de um casal que interpreta a peça de Arthur Miller Morte de um Caixeiro Viajante. O filme de Verhoeven trata de criar problemas de empatia entre o espectador e Isabelle Huppert, que, quanto a ela, trata de perseguir o seu violador – Isabelle tem sido vista nas ruas de Cannes em rodagem, será um novo filme de Hong Sang-Soo.
Mas enquanto isso… os compromissos e as incredulidades daí resultantes de que não se livra este jogo de programar festivais estiveram evidentes nos dois filmes a concurso do dia, The Neon Demon, do dinamarquês Nicolas Winding Refn (custa a acreditar, já foi considerado aqui o Melhor Realizador, por Drive, em 2011) e The Last Face, de Sean Penn, que já esteve presente como actor várias vezes na competição (Sorrentino, Eastwood, Mallick), que se estreou como realizador na Quinzena dos Realizadores (União de Sangue, em 1991), que já foi presidente do júri (em 2008, dando belíssima Palma de Ouro a A Turma, de Laurent Cantet). Era ouvir as vaias, no final, e os risos, durante...
Na ausência e “desaparecimento” de David Lynch, Nicolas Winding Refn surge como ersatz, e com música de discoteca. Só Deus Perdoa (2013) já lhe valera um chega para lá de jornalistas e críticos, mas alguém aqui gosta muito dele e cá está de novo: uma história passada no meio da moda, com competição aguerrida entre a beleza que vai até ao canibalismo (vale tudo até cuspir olhos).
A autocondescendência está ao nível da caricatura, já não tem força para insultar e até pode haver qualquer coisa de didáctico nesta insistência da Croisette com NWR (no genérico de The Neon Demon ele assina assim, como uma marca de moda, como YSL, ou LV): é que por mais que se pudesse resgatar o Refn com ar de menino de coro que faz patifarias, que não perde um momento para extremar a sua autocondescendência, não se aguenta com o convencimento e esse, vai-se tornando cada vez mais evidente (é o que se aprende insistindo nele), está muito mais à frente do que o seu talento (palavra difícil de dizer o que significa, mas por exclusão de partes podemos dizer que é algo que não pode ser vizinho do oportunismo). Já sabemos que as vaias em Cannes mexem com ele.
Afinal, a propósito de Só Deus Perdoa, como um Lars von Trier de bolso, NWR declarara: “Sou um pornógrafo e faço filmes sobre o que me excita”. Que ao menos ele sinta alguma coisa com estas naturezas mortas com que decora… Há quem faça duelos do pior filme do concurso, é este ou o de Dolan? Por aqui é assim: NWR.
O caso de Sean Penn é outro, evidentemente. Embora não isento de uma certa pompa e do mesmo auto convencimento. O genérico inicial pôs logo a imprensa a rir com algum paternalismo quando The Last Face se anuncia como um filme sobre o amor como continuação da guerra. Podia chamar-se Making Love Like War, talvez? É o encontro entre Charlize Theron e Javier Bardem nas tragédias em África e como vão viver e hierarquizar a sua relação, eles que trabalham em organizações humanitárias.
Não se nega a sinceridade de Penn, que é uma declinação da figura do actor/realizador como rock star com consciência politica e humanitária. Mas como cineasta é-lhe difícil fazer escolhas, ter uma voz (por isso rodeia-se de barulho), e povoa este Amor ONG com tudo o que encontra (personagens, como as interpretadas pelos franceses Jean Reno e Adèle Exarchopoulos estarão por ali a cumprir apenas as quotas da co-produção). É-lhe difícil fazer escolhas, é-lhe impossível resgatar o filme ao kitsch.