Brasil: contra-revolução social?
O governo Temer fracassará se, em nome da racionalidade macroeconómica, tentar pôr em prática uma agenda de contra-revolução social.
No dia 17 de Abril, o mundo assistiu em directo a uma lamentável cena de populismo parlamentar na Câmara dos Deputados brasileira, com justificações ridículas para a votação a favor da destituição da Presidente Dilma. Rapidamente surgiram algumas vozes a afirmar que tal espectáculo era um reflexo da realidade brasileira. Seria um erro grave confundir-se o Brasil, e o seu futuro, com as declarações, messiânicas ou de outro teor, dos seus deputados, mas também seria um erro não entender o peso crescente das correntes conservadoras evangélicas e sua influência política, que veio para ficar.
Se o espectáculo deplorável reflecte um certo Brasil que persiste, do caciquismo local, dos coronéis e da corrupção, e o peso crescente do fundamentalismo evangélico na política, também é verdade que o Brasil é hoje um país com uma vibrante sociedade civil, cosmopolita, com centros culturais de primeiro plano mundial – como é o caso de São Paulo, que é uma Nova Iorque dos trópicos. O mistério desta contradição é explicado pela persistência das velhas práticas de clientelismo, pela natureza do sistema politico, pela pulverização partidária, pelo desinteresse de muitos com a política parlamentar e a sua convicção que o que conta são os executivos, sejam federais, estaduais ou municipais.
Nos últimos vinte anos, o Brasil conheceu uma autêntica revolução social, sob o impulso da democracia reencontrada e da legitimidade das forças políticas progressistas e herdeiras da teologia da libertação, nomeadamente o PT. O PSDB dos anos 90 era no essencial um partido social-democrata e iniciou, com a Presidência de Fernando Henrique Cardoso, o processo de reformas que facilitou a revolução social dos governos da Presidência Lula, continuado no primeiro mandato de Dilma, apesar das enormes dificuldades e erros na gestão da crise financeira de 2008 e os casos de corrupção que comprometeram a agenda ética do PT.
Nos anos 80 do século passado, o Brasil era um dos países mais injustos do mundo. Edmar Lisboa Bacha consagrou a Belíndia, um país fictício onde uma pequena minoria vivia como na rica Bélgica e a imensa maioria partilhava as condições de vida das zonas mais miseráveis da India de então.
Tal como na China e na Índia, a classe média brasileira conheceu um crescimento significativo. Entre 1993 e 2012, de acordo com Marcelo Néri, no livro A Nova Classe Média, 60 milhões de brasileiros terão saído da pobreza e integrado a classe média. No entanto, são muitos os milhões de brasileiros nesta situação que actualmente, perante a recessão, se preocupam com o seu futuro.
Esta revolução social foi acompanhada por progressos significativos no domínio da emancipação das mulheres, da educação, da saúde pública, mesmo se os desafios nestas áreas continuam a ser enormes, nomeadamente o de integrar os que se definem como não brancos (51% da população segundo o censo de 2010).
Mas talvez o fenómeno mais significativo do novo Brasil tenha sido a emergência de uma poderosa sociedade civil, muito dela comprometida com a agenda social, da inclusão e de defesa dos direitos das minorias, que foi empoderada pelas tecnologias de informação e fez das redes sociais um instrumento de afirmação política e cultural. Sociedade civil sem paralelo fora da Europa ocidental e dos Estados Unidos.
O Brasil é um dos países do mundo onde os cidadãos mais utilizam as redes sociais. O Brasil já é o quarto país em número de utilizadores do Facebook, com 70,5 milhões, e também o quarto em percentagem da população, com 34,5%. O Brasil é o segundo país com maior número de utilizadores do Twitter e com uma utilização extremamente criativa do YouTube, que multiplica os canais de televisão individuais dos Youtubers e rompe com a hegemonia da TV Globo.
Através das tecnologias de informação, a sociedade civil brasileira conseguiu, assim, limitar, em certa medida, o monopólio dos grandes grupos de informação que, da hiperconservadora Veja à mais plural Folha de São Paulo, representam os interesses do passado, tendo apoiado os golpes contra as tentativas de fazer vingar uma agenda social: foi assim contra João Goulart em 1964.
Esta revolução social foi acompanhada pelo crescimento das correntes religiosas e políticas dos evangélicos. O Brasil é um bom exemplo da combinação do défice de expectativas com a descrença nos partidos e nas instituições da democracia representativa. Foi utilizando as redes sociais que, em Junho de 2013, explodiram as manifestações dos indignados brasileiros, exigindo melhores serviços públicos e uma democracia mais participativa. As manifestações contra a Presidente Dilma que levaram à sua queda, com o seu cunho populista e antipartidário, foram potenciadas pela mesma mega tendência de empoderamento das estruturas não-governamentais que permitiu as manifestações de Junho de 2013. O Brasil conhece assim uma espécie de “indignados conservadores”, à semelhança do Tea Party. Segundo Renato Janine Ribeiro, a extrema-direita brasileira tem uma agenda voltada para os costumes, com “ódio cabal aos direitos humanos” e em grande medida revê-se na bancada parlamentar evangélica, com 75 deputados, grandes obreiros do impeachment da Presidente Dilma e que tinham no Presidente da Câmara de Deputados Eduardo Cunha (até à sua suspensão por acusações de corrupção) um dos seus líderes.
Com a emergência de um novo Brasil, não desapareceu ainda o poder de uma oligarquia, herdeira dos senhores de escravos – é elucidativo ler, por exemplos o romance Viva o Povo Brasileiro de João Ubaldo Ribeiro. Trata-se de uma elite extremamente egoísta, que viu com horror a invasão do espaço público por uma nova classe média e se opõe às políticas sociais, como o Bolsa Família, a que chama, com desprezo, de assistenciais.
O governo Temer fracassará se, em nome da racionalidade macroeconómica, a sua principal prioridade, tentar pôr em prática uma agenda de contra-revolução social. Já começaram os retrocessos, como se viu na composição de um governo exclusivamente masculino e branco, mas todas as tentativas de pôr em causa as conquistas sociais da última década enfrentarão uma forte oposição. Tanto mais que a pouca legitimidade eleitoral de Temer advém de ter sido eleito como vice de Dilma, numa campanha em que conjuntamente garantiram que iam defender as conquistas sociais, o que foi sufragado por 54,5 milhões de eleitores.
Os meios de comunicação internacional de referência parecem ter compreendido que o Brasil não é o triste espectáculo dos seus deputados, por um lado, e têm realçado a ilegitimidade da destituição da Dilma Rousseff, por outro. Essa é também a posição de um número significativo de países latino-americanos.
Em Portugal há quem diga que o novo poder brasileiro, apesar de direita, poderá ser mais próximo de Lisboa do que o executivo de Dilma Rousseff. Portugal não deve ficar confinado às velhas elites brasileiras que se identificam com o seu passado europeu e o celebram; tem que ser capaz de se relacionar com os sectores da sociedade que representam o futuro do Brasil, com quem muitos portugueses partilham visões de sociedades mais justas, desenvolvidas e inclusivas.
Investigador convidado do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo em 2014-2015