Desafios para o Património Cultural Português

O imediato não pode por em causa o nosso futuro e qualquer compromisso nesta área tem de se ser baseado no princípio da cautela.

O património cultural tem estado na ordem do dia nos dois últimos anos. Diversos casos mediáticos, como o eixo Belém-Ajuda, o processo dos Mirós pertencentes ao ex-BPN, a pintura Virgem com os Meninos e Santos de Crivelli, a ampliação do Museu do Chiado e a abertura do novo Museu dos Coches – com estes dois equipamentos sufragados pelo franco aumento do público – entre outras, tiveram larga divulgação. Mesmo tendo em conta a forte politização destes casos, com alguma intoxicação da opinião pública, com alguma má-fé ou ignorância de permeio, não deixa de ser importante registar que os debates então levantados, bem ou mal, revelam a importância atribuída da necessidade da salvaguarda do Património Cultural Português.

Para muitos o Património, tantas vezes visto como uma curiosidade estática ou, nos piores dos casos, como um obstáculo ao desenvolvimento e modernização do país,  passou a ser reconhecido como um dinâmico agente económico. Esta visão é reforçada pela consciência que a gestão dos museus, monumentos e palácios revelam uma fortíssima potencialidade financeira, aliás bem comprovada pelo recente e assinalável crescimento das receitas do principal organismo tutelar do património, a DGPC. Neste domínio dever-se-á ter sempre em conta que é imperativo o equilíbrio entre a procura de receitas próprias e a salvaguarda e usufruto do património,  não apenas pelos turistas mas também pelos visitantes nacionais – os ‘proprietários’ do património, de alguma maneira – que aí encontram indeclináveis referências identitárias.  Uma instituição que encare a defesa do património fundamentada no mercantilismo, em que a experiência de usufruto é entendida como um bem de consumo, mesmo justificando-o pelos trabalhos de conservação obtidos,  criará a longo prazo uma grave cisão com a sociedade que deve servir. Guetos patrimoniais, apenas acessíveis pela capacidade financeira dos visitantes, não podem existir e devem ver rapidamente alterados os seus modelos. Património protegido sem benefício da comunidade não é, de todo, defensável. 

A crise identitária que vivemos, tornaram o património uma bandeira na afirmação da cidadania e dos seus direitos. Esta dimensão política e social é todavia muito mais abrangente, e constitui porventura a sua dimensão mais rica e dinâmica.

O tempo do património, como tempo longo que é, ajuda a comunidade a adaptar-se à velocidade crescente com que as transformações politicas e sociais operam em nosso torno, tantas vezes dificultando o entendimento imediato das experiências do quotidiano. Muito mais do que um lugar de refúgio, o património é um espaço de reflexão e preparação, e uma plataforma identitária colectiva altamente interventiva. 

Tal contexto não pode ser ignorado pelas instituições tutelares do património cultural que, de modo muito positivo, têm vindo a abrir mão do conceito de figuras exclusivas de intermediação entre a sociedade e os legados culturais. Destaca-se nessa evolução da sua praxis a necessidade de trabalhar com uma multiplicidade de agentes, que englobam os seus colaboradores directos e indirectos, os públicos – sejam os visitantes ou todos aqueles que beneficiam da sua existência digital –, as associações de defesa do património, passando pelas autarquias, universidades e centros de investigação.

O paradoxo da salvaguarda patrimonial num período de grandes transformações e ameaças é não deixar de lhes ser simultaneamente permeável e reactivo.

Daí os grandes desafios com que actualmente deparamos. A gestão patrimonial exige uma perspectiva de futuro, plasmada em grandes linhas orientadoras, procurando alinhar interesses por vezes aparentemente antagónicos, que ultrapassem restrições quotidianas e que nos projectem no futuro. Trata-se de um difícil exercício, mas altamente compensador. Exige saber o que se quer e para onde nos dirigimos. Que não nos dispersemos em torno de novidades ou temas mais ou menos apelativos, ou até de oportunidades “únicas” de financiamento, privilegiando-se o imediato reconhecimento público, que passando o ruído e com grandes custos, que não apenas financeiros, perdem qualquer sentido.

Não ceder a interesses de carácter imediato e assegurar a independência decisória através do cumprimento da lei são caminhos a manter escrupulosamente. O imediato não pode por em causa o nosso futuro e qualquer compromisso nesta área tem de se ser baseado no princípio da cautela.

Propõe-se por isso aqui, desde já, um novo entendimento do património, vivo e dinâmico, alinhado com a multiplicidade de actores que jogam em favor da sua protecção, divulgação e usufruto, sendo que a não compreensão deste novo paradigma só pode ser efeitos altamente negativos no desenvolvimento de qualquer política cultural. 

E-Director-Geral do Património Cultural e Secretário de Estado da Cultura

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