Casos de homofobia nas escolas não chegam ao Ministério da Educação

Os relatos de discriminação sexual chegam às associações de defesa dos direitos dos homossexuais, mas ainda não ao Ministério.

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Na escola rígida e pautada pelas regras militares, não há memória de estudantes a assumirem-se como homossexuais Maria João Gala

Até hoje a Inspecção-Geral de Educação e Ciência “nunca foi chamada a averiguar nenhum caso” de segregação sexual nas escolas, admite fonte oficial do gabinete do ministro da Educação, Tiago Brandão Rodrigues, embora garanta que, perante indícios de discriminação, os estabelecimentos de ensino devem sempre denunciar esses casos à tutela.

O PÚBLICO colocou a questão ao Ministério da Educação na sequência de suspeitas de homofobia no Colégio Militar (CM), depois de o subdirector da instituição admitir que os estudantes homossexuais são excluídos pelos colegas e acabam por ser afastados. A controvérsia ganhou fôlego com a demissão do Chefe de Estado-maior do Exército, Carlos Jerónimo, e promete continuar na próxima terça-feira, dia 26, com a audição no Parlamento do ministro da Defesa, que considerou “absolutamente inaceitável” qualquer discriminação baseada na orientação sexual.

A exclusão de alunos gay pela instituição militar com 213 anos é negada pelo presidente da Associação de Antigos Alunos do Colégio Militar (AAACM). Nos últimos três anos, foram afastados dois rapazes “não por homofobia, mas por ter havido tentativa de abuso sexual”, revela ao PÚBLICO José Cordeiro de Araújo. Já o colégio e o Exército recusam adiantar ao PÚBLICO quantos estudantes foram excluídos da instituição por questões sexuais e o Ministério da Defesa diz não ter dados sobre essa realidade.

Cordeiro de Araújo admite, contudo, a existência no CM de um código de honra não escrito onde a homossexualidade é ainda considerada uma falta grave, lado a lado com o consumo de droga ou o roubo, e que é passado de geração em geração pelos alunos graduados (12.º ano) aos estudantes mais novos. “Esse código está relacionado com a tentativa de prevenção de abusos sexuais numa instituição que até há três anos só acolhia rapazes em regime de internato e onde as questões da sexualidade sempre tiveram de ser acauteladas, bem como pela mentalidade que durante anos vigorou nas Forças Armadas”, justifica.

Pedro Varela de Matos, 25 anos, foi aluno no colégio até 2008 e conta ao PÚBLICO que sempre se sentiu obrigado a esconder dos colegas que era homossexual. Vivia “no terror” de ser descoberto e discriminado. “Achei que era um criminoso [por ter desejos homossexuais]. Só pensava que tinha de fazer tudo para travar esses sentimentos, para mudar”, diz.

“Na minha cabeça uma coisa era clara: havia uma escolha que me estava a ser imposta.  Tinha que decidir se queria ser aluno do CM ou ser homossexual, pois ali nunca poderia ser as duas coisas”.

Na escola rígida e pautada pelas regras militares, hoje frequentada por 690 alunos, dos quais 370 em internato, não há memória de estudantes a assumirem-se como homossexuais no interior da instituição. No Exército, aliás, até há meia dúzia de anos, qualquer demonstração gay era motivo para expulsão ao abrigo do Regulamento da Disciplina Militar por ofender a moral pública, o brio e decoro.

Curiosamente, foi a chegada das raparigas que obrigou o CM a tentar lidar com estas questões: criou entretanto um projecto de pedagogia inclusiva e reforçou as aulas de Educação para a Saúde Sexual e os Afectos para os estudantes do 2.º e 3.º ciclos, onde a orientação sexual é abordada. “Estamos a adaptarmo-nos às muitas mudanças que nos foram impostas sem preparação: a integração de raparigas, a abertura ao 1.º ciclo e ao regime de externato”, diz Cordeiro de Araújo. “Estamos todos os dias a aprender e a aperfeiçoar formas de actuação. Mas, como em tudo, é preciso tempo para mudar as mentalidades”.

Perseguidos nas escolas

Os relatos de discriminação por parte das escolas contra estudantes gays não se limitam, todavia, à instituição militar. São feitos por alunos e funcionários de estabelecimentos de ensino públicos e privados junto de associações de defesa de direitos homossexuais.

Desde 2012, o Estatuto do Aluno proíbe expressamente que este possa ser penalizado pela sua orientação sexual, reforçando um direito que a Constituição estabeleceu em 2004. “A lei existe, mas está longe de ser cumprida”, lamenta Manuela Ferreira, da Amplos, uma associação criada há seis anos para apoiar pais que lutam pela liberdade de orientação dos filhos. “Há escolas onde estudantes com uma orientação sexual diferente são perseguidos até por funcionários e docentes”.

A mãe de Ana (nome fictício) relata ao PÚBLICO que a filha foi vítima de uma “verdadeira perseguição” por assumir na escola a sua homossexualidade. Começou com chamadas de atenção das funcionárias no recreio quando viam a aluna de 13 anos de mão dada ou abraçada à namorada, ao contrário do que sucedia com outros rapazes e raparigas na escola básica nos arredores de Lisboa. Mas, diz, rapidamente as funcionárias passaram a segui-las e a ameaçarem denunciá-las aos pais. “A minha filha já me contara que era homossexual, mas os pais da outra menina não sabiam e ela vivia com medo que descobrissem”, adianta.

A pressão tornou-se insustentável para Ana quando um dia no recreio uma das professoras lhe disse: “Sabem, cada vez que vocês se abraçam há uma criança que morre”, recorda. “A minha filha telefonou-me a chorar da escola: 'Já não aguento mais, preciso de ajuda'”.

A mãe pediu apoio à Amplos e marcou uma reunião com o conselho directivo: “Disseram-me que esta era uma situação de atentado ao pudor, não de homofobia”, que pelo regulamento os estudantes também não podiam andar de mini-saia ou de top. “Tentei explicar-lhes que não era admissível esta violência, que a Constituição proíbe a discriminação em função da orientação sexual”, adianta. “Não sabiam lidar com a situação e optaram por a reprimir”. Depois do encontro, a pressão sobre as duas estudantes abrandou e a mãe nunca apresentou queixa ao Ministério da Educação. Ana, que era finalista, abandonaria a escola no final desse ano lectivo.

Complacência legitima agressões

É sobretudo através de denúncias anónimas online ou pedidos de apoio por email que situações como esta são relatadas a associações como a Ilga Portugal. Ali até chegam alertas de docentes assustados.

“Há dois anos uma professora ligou-nos. Falava baixinho, escondida. Pedia ajuda para resolver uma situação de discriminação homofóbica muito grave feita por professores sobre um aluno", explica a directora-executiva do organismo, Marta Ramos. A docente desligou a chamada a meio. “Estava cheia de medo. Ainda tentamos seguir-lhe o rasto, detectar a escola e penso que até a descobrimos. Quando ligámos para lá recusaram a nossa intervenção”.

Desde Janeiro, a associação recebeu duas denúncias de estudantes por homofobia no ensino, uma delas explicitando que a escola nada fez para reprimir os insultos e preconceitos de que era alvo. No ano passado, outras 16 vítimas de bullying sexual em escolas secundárias relataram à Ilga que os seus casos foram testemunhados mas não punidos. “Existe uma complacência dos conselhos directivos e dos funcionários que legitima a homofobia”, garante Marta Ramos, frisando que a maioria da discriminação em jovens é feita no recinto de ensino, entre pares e sofrida em silêncio pelas vítimas.

A passividade das escolas, defende, é visível mesmo quando há situações de violência física, como aquela que levou a dirigente da Ilga há quatro anos a alertar a PSP, através da Escola Segura. “Fui chamada para ajudar num caso de duas alunas do 9.º ano, que namoravam e foram agredidas pelos colegas à porta de uma escola básica nos arredores de Lisboa. Os alunos fecharam os portões para que elas não conseguissem entrar nem refugiar-se das agressões. Nenhum responsável interveio”, remata.

Estudos nacionais sobre o bullying homofóbico também apontam nesse sentido. “Os comportamentos de agressão são desvalorizados: em 80% das situações de bullying sobre os alunos inquiridos, os agressores não foram punidos”, explica Raquel António, do Centro de Investigação e Intervenção Social do ISCTE, que em 2012 avaliou o impacto do problema através de inquéritos a estudantes. A psicóloga está agora a investigar a falta de reacção dos pares perante o fenómeno e continua a deparar-se com as mesmas denúncias.

Três mil debatem homofobia

As escolas dividem-se na forma como reagem a estes problemas. “Não há um procedimento interno regulado para lidar com a discriminação homofóbica. Actua-se consoante a gravidade das situações”, admite Filinto Lima, dirigente da Associação Nacional de Directores de Agrupamentos e Escolas Públicas. “Em casos graves deve ser sempre aberto um processo disciplinar”, diz o responsável que desconhece, contudo, situações de punição a alunos.

Para Cátia Figueiredo, presidente da rede ex aequo, que dá apoio a jovens homossexuais e transgénero, “se, por um lado, há estabelecimentos que legitimam a homofobia, também se assiste a uma maior abertura das escolas para abordar as questões da orientação sexual”.

Só no ano passado, mais de três mil estudantes do secundário no país participaram em encontros sobre o tema, promovidos pela associação. “Só podemos fazer palestras nas escolas com autorização da direcção”, diz a dirigente, acrescentando que “são geralmente os estabelecimentos onde há problemas que recusam a nossa participação”.

Mais raros são os pedidos para a rede ex aequo formarem professores ou psicólogos. “Temos programas específicos, mas têm pouca adesão por não darem créditos para a carreira docente”, lamenta Cátia Figueiredo.

Para o presidente da Associação Nacional de Dirigentes Escolares (ANDE), Manuel Pereira, os responsáveis pelo ensino devem sempre combater a exclusão. No Agrupamento de Escolas de Cinfães, que dirige, já lidou com dois rapazes vítimas de insultos homofóbicos persistentes: “O que fizemos foi apoiá-los e protegê-los, através do acompanhamento pelo director de turma e reforçando a vigilância pelos funcionários".

Manuel Pereira vê “com preocupação” os relatos que vão chegando às associações. “Na ANDE não temos queixas, mas as situações graves deste género não saem geralmente das direcções das escolas. Quero acreditar que são uma excepção e que as direcções contribuem para a inclusão de alunos”.

É precisamente para esclarecer a polémica sobre a segregação de alunos homossexuais no Colégio Militar e a falta de medidas pedagógicas “que contrariem aquele preconceito” que, a pedido do Bloco de Esquerda, as direcções do Colégio Militar e da Associação dos Antigos Alunos do Colégio Militar serão ouvidas no Parlamento. A reunião com a subcomissão parlamentar para a Igualdade e Não Discriminação foi marcada para 3 de Maio.

Nesta sexta-feira, a quatro dias de ser ouvido no Parlamento, o ministro da Defesa considerava o assunto resolvido."Não gostaria que o caso Colégio Militar se tornasse protagonista de um episódio evidentemente desagradável, mas que já foi ultrapassado", disse, numa visita ao Porto.

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