A cor de Prince? Naturalmente púrpura
Quando Prince caminhava para o estrelato, a MTV temia que a presença de músicos negros na sua programação assustasse a América profunda. Prince ajudou a ultrapassar barreiras que, nos Estados Unidos, continuam por derrubar.
Marlene Dietrich só se permitia ser retratada com as lentes e a iluminação correctas para que o seu brilho fosse o dela, o da mítica Marlene. Quando Prince surgiu perante o mundo, em 1978, os olhos de todos viram-no com a mesma qualidade icónica proporcionada pela lentes e a iluminação correctas de Marlene: apareceu plenamente formado, lendário já antes de o ser. Eis Prince, o músico que inventou o seu tempo da forma mais moderna possível: fazendo-se uma síntese única dos mestres – negros – que o antecederam, de Sly & The Family Stone a Jimi Hendrix, de James Brown a Little Richard, dos Funkadelic a Earth, Wind & Fire.
Nos anos 1980, Prince competia com o também afro-americano Michael Jackson no estatuto de mega-estrelato, ainda que fosse a antítese andrógina, libidinosa e provocadora daquele. Ambos, e nisso estavam unidos, eram músicos universais, músicos que transcenderam uma barreira que, nos Estados Unidos, teima em não desaparecer totalmente – mais ontem, mas ainda hoje, como os últmos anos têm tristemente comprovado.
Quando da morte de David Bowie, tornou-se viral uma entrevista dada à MTV, em 1983, em que o cantor de Space oddity contestava a quase ausência de músicos negros, relegados para as madrugadas, na programação de primetime da estação televisiva, que começava então a afirmar-se como um dos maiores e mais influentes meios de divulgação musical. É uma ilusão provocada por um visionamento parcelar do canal, defendeu-se o VJ Mark Goodman. Bowie insistiu. Goodman continuou a explicar. “Claro que, além de pensar no que o nosso público apreciará ouvir em Nova Iorque ou Los Angeles, temos de pensar por exemplo no Midwest. Se numa cidade do Midwest ouvirem o Prince, que estamos a passar, ou outros rostos negros, vão apanhar um susto de morte." Bowie sendo Bowie, respondeu com aceno de cabeça e um fleumático “that's very interesting” (“isso é muito interessante”).
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O racismo da América profunda era, portanto, a justificação para a ausência de música negra na televisão da música. Porém, desde o ano anterior à entrevista de Bowie que havia excepções à regra não escrita. Billie Jean, de Michael Jackson, e Little red Corvette, de Prince, o terror do Midwest, foram em 1982 os primeiros vídeos de músicos a ser alvo de passagem contínua, diária, no canal televisivo.
A Motown, auto-nomeada “o som da jovem América”, ajudara a eliminar barreiras raciais nos tempos da luta pelos direitos civis. Na década de 1980, Michael Jackson e Prince fizeram o mesmo no media mais poderoso do seu tempo. Prince, o génio precoce que compôs a sua primeira música aos sete anos – título premonitório: Funk machine –, o filho de dois músicos jazz – o pai, pianista, a mãe, vocalista – que percorreram os Estados Unidos quando, pela cor de pele, não podiam jantar em muitas das salas em que tocavam, sempre teve presente a sua condição de afro-americano e a história que carregava.
Em 2014, numa entrevista à revista musical britânica Mojo, dois anos antes da polémica em volta da ausência de actores e actrizes negros nos nomeados dos Óscares, Prince acusava a indústria musical e cinematográfica de racismo. “O Leonardo DiCaprio pode fazer mau filme atrás de mau filme, e continua. O Chris Rock faz um mau filme, e não volta a trabalhar. Às pessoas negras não lhes permitem que cometam erros”, denunciou. “Não sabia que os negros não têm uma segunda oportunidade?”, lançou ao entrevistador. Um ano depois, quando mais um jovem negro, Freddie Gray, foi assassinado pela polícia americana em Baltimore, Prince não tardou a reagir. Editou uma canção de homenagem, Baltimore, e organizou um concerto, o Rally 4 Peace, na cidade americana.
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Prince não se deu ao luxo de precisar de uma segunda hipótese. As fundações da sua música, aquelas com que se construiu, estavam plenamente definidas desde o início: o funk, a soul, o rock'n'roll e o jazz (também o hip-hop, a partir da década de 1990), pinceladas com traços de toda a outra música, muita música, que lhe povoava o imaginário melómano – quando morreu o seu pai, John Lewis, homenageou-o com uma versão de Case of you, original de Joni Mitchell. Quando surgiu, Prince mostrava igualmente uma inata capacidade para compreender e para se inserir no seu tempo, usando a favor da música as novas estéticas e soluções trazidas pelas novidades tecnológicas. Sobre tudo isto, a forma como se apresentava: a androginia que atraía e intrigava, a sensação que se sentia ao vê-lo de que não pertencia verdadeiramente a outro lugar que não o da fantasia pop que escolheu projectar – a sua cor era, naturalmente, púrpura.
Prince é Prince, e Prince continuou a ser quando assinava ou O Artista Anteriormente Conhecido como Prince. Genial, sábio e talentoso o suficiente para acertar à primeira hipótese. Mas consciente, desde os tempos em que a MTV temia assustar pacóvios no Midwest, de que havia razões para evitar que uma segunda hipótese fosse necessária.