Com 15 anos, Elisabete curou-se como 75% das pessoas que têm cancro na infância
Quando tinha 14 anos, Elisabete Chança passava três semanas por mês no IPO, duas delas em isolamento. Ao fim de um ano curou-se e hoje vive uma vida normal. Como ela há pelo menos mais 1500 pessoas em Portugal.
Começado o tratamento depois de diagnosticada a doença, Elisabete Chança não teve dúvidas de que sobreviveria. “Sempre me deram certezas”, diz. Mas quando teve alta, soube que os médicos, em duas ou três ocasiões, duvidaram. “O coração estava fraco e eles não tinham a certeza que eu suportasse o tratamento. Mas sempre me foi dito: ‘Estamos no bom caminho.’ Fomos resguardados dessa incerteza.” Talvez por isso, sentiu-se quase sempre com força para acreditar. Tinha 14 anos. Aos 15 anos, estava curada e voltou a estudar. Emocionalmente teve um outro episódio em que o seu mundo desabou, mas foi fisicamente que se sentiu muito mal, recorda. “O caminho é mesmo para a frente.”
Hoje com 27 anos e a trabalhar na área do turismo em Sintra, onde vive, Elisabete é uma sobrevivente de cancro pediátrico, entre pelo menos 1500 pessoas na mesma situação em Portugal, diz Ana Teixeira, pediatra no Serviço de Pediatria do Instituto Português de Oncologia (IPO) de Lisboa, que em 2007 criou a consulta dos DUROS (Doentes que Ultrapassam a Realidade Oncológica com Sucesso), destinada a todos os doentes do serviço que tenham terminado a terapêutica há mais de cinco anos. Mas essa é apenas uma estimativa. Podem ser mais.
A consulta em Lisboa acompanha actualmente 744 pessoas, tendo a maioria (86%) entre dez e 30 anos. Nos Estados Unidos, serão mais de 40 mil sobreviventes de cancro pediátrico, diz a especialista. “O objectivo desta consulta é tentar melhorar e harmonizar a vigilância que é feita em toda a Europa, prevenir o aparecimento de efeitos secundários tardios que possam comprometer a vida ou a qualidade de vida”, explica.
Sobreviver a uma leucemia
A taxa de sobrevida das pessoas que tiveram um cancro na infância tem vindo a aumentar e rondou, nos últimos anos, os 75% em Portugal e noutros países. Não há estatísticas para fazer uma leitura de como a taxa de sobrevida evoluiu. Mas comparativamente aos anos 1960, por exemplo, uma criança não sobrevivia a uma leucemia e, agora, uma criança com leucemia tem uma elevada probabilidade de sobreviver (85%), explica a médica pediatra. A taxa de sobrevida ainda é mais elevada para os tumores renais ou os linfomas de Hodgkin (97%).
Os dados relativos aos últimos cinco anos em Portugal vão ser apresentados esta quinta-feira no 17.º Encontro da PanCare, a rede europeia de profissionais de saúde que se dedicam ao acompanhamento a longo prazo dos sobreviventes de cancro pediátrico, como os profissionais da consulta dos DUROS. O encontro, na Fundação Calouste Gulbenkian, começou ontem e termina nesta sexta-feira.
A infertilidade em resultado dos tratamentos “tem vindo a tornar-se um problema cada vez mais raro, com uma melhor adequação das doses de quimioterapia e radioterapia a aplicar”, salienta ainda Ana Teixeira. E refere que 42 sobreviventes de cancro pediátrico tiveram 48 filhos.
Os casos mais graves representam uma pequena minoria. Do conjunto de pessoas acompanhadas na consulta dos DUROS, houve 32 casos em que a pessoa sofreu um segundo cancro e cinco recidivas tardias. O risco de segundas neoplasias é seis vezes superior ao de uma pessoa que teve um cancro pediátrico. Mas, como diz Ana Teixeira, “é o preço a pagar por vivermos mais tempo” — o que se aplica a quem teve ou não um cancro na infância.
Por outro lado, existe um grupo mais vulnerável que, quando sobrevive, sobrevive com muitas sequelas. São normalmente pessoas que sofreram tumores no sistema nervoso central. “Ao irradiarmos o cérebro, estamos a comprometer uma série de funções, como as funções cognitivas ou endócrinas”, diz a pediatra do IPO. Também podem surgir problemas comportamentais ou cardíacos.
"Uma vitória muito grande"
Elisabete Chança começou por sentir uma forte dor nas costas. Um dia, durante as férias do Natal, tinha as pernas totalmente dormentes ao acordar. Horas depois não caminhava nem se equilibrava sozinha. Era uma adolescente. Na escola frequentava o 9.º ano. Rapidamente ficou paralisada, sem conseguir sentir os movimentos das pernas. Começou por ir à urgência de Pediatria do Amadora-Sintra, de onde foi transferida para o Garcia de Orta, e aí ficou internada para a ressonância magnética e outros exames. Na cirurgia, tiraram-lhe “uma massa instalada na medula” para análise. Era a fase das suspeitas e de nenhuma certeza, diz Elisabete. Inicialmente, os médicos suspeitaram de um linfoma. Depois confirmou-se um sarcoma de Ewing. Num ano de tratamentos intensivos, ficaria curada.
“Foi um sofrimento muito grande, mas também uma aprendizagem muito grande e uma vitória muito grande”, diz a mãe, Preciosa Chança. “Foi andar para a frente”, acrescenta Elisabete. “Decidi rapar o cabelo, para não o ver cair.”
Foram 12 meses de tratamentos, em semanas alternadas de quimioterapia e radioterapia. Passava três semanas por mês no hospital, duas das quais em isolamento, onde só contactava com a mãe, médicos e enfermeiros. “Para que o tratamento fizesse mesmo efeito, e porque as nossas defesas vão completamente abaixo, somos levados para o isolamento, esperamos que os valores voltem a subir, e só depois podemos sair”, explica.
Passou muito tempo sozinha — a pintar, a ler, a ouvir música ou ver televisão. “Mas guardamos histórias para o resto da nossa vida, de pessoas que guardamos na memória, com carinho, algumas que infelizmente já não estão cá”, diz Elisabete.
Tudo isso acabou finalmente. Quando terminou o tratamento, passou a ser seguida no IPO uma vez por mês, depois de dois em dois meses, três, quatro, até a consulta passar a ser anual, cinco anos depois de estar curada. Nessa altura passou a ser seguida na consulta dos DUROS, onde lhe são feitas análises sanguíneas, raios-X (porque a radioterapia incidiu muito no coração e pulmões) e espaçadamente é submetida a novas ressonâncias magnéticas ou exames mais específicos.
“No meio disto tudo, sinto que tive sorte”, diz. Pela família, pelos amigos e pelos colegas que nunca deixaram de estar perto dela. “Quando estava em casa, amigos e colegas da escola reuniam-se para vir ver-me. E quando tinha algumas forças, eu própria ia à escola. Era bom para mim, e para eles, para saberem que eu ainda estava viva.”