Uma turba perigosa e sem escrúpulos
Durante três penosas horas, a Câmara dos Deputados em Brasília dedicou-se a debater a destituição da Presidente Dilma Rousseff e transformou-se nesse lugar estranho onde subsiste o pior que há no Brasil: a política. O deplorável ambiente de comício, a inacreditável facilidade com que se trocavam insultos, a essência do Estado laico a ser torpedeada por persistentes clamores evangélicos, o deboche egocêntrico que levou uns a citar os filhos e outros os lugarejos de origem (sempre deu para saber que no Maranhão existe uma Itapecuru) foram apenas mais uma prova de que o Brasil está entregue a uma horda de predadores a quem não se pode confiar uma chave de casa, quanto mais o destino de uma Presidente eleita. Miguel Haddad, do PSDB (oposição), sobressaiu nesse festival de vaidades e vacuidades ululantes ao dizer que “o nosso país precisa de fazer sentido”. É precisamente isso que falta na história do impeachment de Dilma: lógica, coerência, objectividade, reflexão, ponderação, tolerância e democracia. Ou, se quiserem, sentido.
Entre as intervenções dos 25 partidos e as dos líderes das bancadas do Governo e da minoria, raramente se falou no que estava em causa. O relatório apresentado pelo deputado Jovair Arantes, que justificava o impeachment, passou ao lado das intervenções. O que se viu e ouviu nessa feira de vaidades foi o perfume inebriante do ódio acirrado pelo medo. E o anseio de oportunidades que a possível viragem no ciclo político sempre propicia a uma alcateia de deputados que, em 60% dos casos, tem casos pendentes na justiça.
Dilma violou a lei ao usar dinheiro da banca pública para financiar programas do Governo e, sim, Dilma violou a lei da Responsabilidade Fiscal. Mas, num país informal onde o Tribunal de Contas é um patinho sentado, se essa fosse causa para a destituição, há muito que o Planalto ou as sedes dos governos estaduais eram uma permanente dança da cadeira. Dilma e o PT estão acossados porque governaram mal, porque se agarraram ao poder como lapas, porque facilitaram gigantescos esquemas de tráfico de influência onde grassou a corrupção, porque a economia está de rastos, porque a Presidente mandou na Petrobras nos anos tenebrosos dos negócios espúrios e desvios colossais, mas o impeachment não tem nada a ver com isto. Tem a ver com supostas violações de regras que podem ser objecto de censura política mas nunca de recurso à bomba atómica do sistema político brasileiro, o impeachment.
Se alguma utilidade teve o penoso exibicionismo dos deputados brasileiros na tarde deste domingo foi o de provar isso mesmo. Que o que está em causa é apenas um expediente legal e processual para derrotar no parlamento o que o PT ganhou nas urnas. A tese do golpe não é por isso absurda. O que é absurdo é que a multidão que estava a julgar o destino de uma Presidente inepta, arrogante e incompetente, mas apesar de tudo com a ficha limpa na Procuradoria, tenha na sua maioria contas a prestar na Justiça. O que é incompreensível é que o presidente da Câmara, Eduardo Cunha, seja ele próprio um dos campeões das suspeitas de corrupção. O que é sem sentido é que o grande guru da operação, Michel Temer, possa escapar das acusações de violações à lei quando foi até há pouco vice de Dilma. Ganhe ou perca este combate (o processo passa agora para o Senado), a Presidente é passado e o pior é que não se vislumbra nenhum futuro. Com uma Câmara de Deputados assim, histriónica, acéfala, umbiguista e demagógica, mais do que Dilma, o que está em perigo permanente é a democracia.