Os bloqueios do Brasil
Quando a legitimidade política está em causa, não há nada como recorrer ao voto popular.
Por estes dias, o Brasil surge aos olhos do mundo dividido, desnorteado e com os três poderes-base das sociedades democráticas praticamente bloqueados. O poder legislativo está ferido pela suspeita de corrupção que recai sobre um número considerável de deputados que se encontram sob investigação; o judicial perdeu respeito e independência ao cometer ilegalidades, como fez o juiz Moro, ao divulgar escutas telefónicas não autorizadas, ou o juiz Catta Preta, ao vir para a rua manifestar-se a favor da destituição de Dilma Roussef, apesar de ser directamente responsável por decisões judiciais relacionadas com a acção da Presidente; e, finalmente, o poder executivo cujo descrédito atingiu o ponto de não retorno no momento em que Dilma anunciou a nomeação do seu antecessor, Lula da Silva, para ministro da Casa Civil.
Como é sabido, isto aconteceu no auge do cerco da Justiça ao ex-Presidente e a decisão de Dilma foi entendida como uma forma de subtrair Lula da alçada do juiz responsável pela operação Lava-Jato – o que efectivamente aconteceu, visto que, ao entrar para o Governo, Lula passou a ter foro privilegiado, o que significa só poder ser julgado pelo Supremo Tribunal.
Perante um cenário em que, na realidade, está tudo em causa nas várias instâncias do edifício constitucional brasileiro, não se vê como vai o país aceitar uma decisão sobre a destituição da Presidente, seja ela a favor ou contra. Fracturada como está, uma parte da sociedade brasileira não vai sentir-se representada no sentido de voto da Câmara de Deputados e tenderá sempre a contestá-lo – o que pode afectar a paz social e a consequente capacidade de as instituições encontrarem soluções justas para os enormes problemas que afectam o Brasil.
A quebra de confiança nas instituições e nos protagonistas políticos está a potenciar uma crise de legitimidade que está no centro deste bloqueio político e que ameaça transformar-se em perigoso bloqueio social. Ora, quando isto acontece, não há nada como ir directamente ao voto popular, fonte primordial de legitimidade, colher o suplemento de autoridade política em falta. Mas não é fácil convocar eleições presidenciais no Brasil. Aliás, o sistema político do país é um anacronismo intrincado de legislação capaz de surpreender os mais experimentados constitucionalistas. Permite, por exemplo, que deputados sob investigação ou mesmo já constituídos arguidos em processos de corrupção, lavagem de dinheiro, tortura ou exploração de mão-de-obra escrava (e mais de 60% dos membros do Congresso estão nesta situação) avaliem a conduta da Presidente, isentando assim o mandato desses deputados de qualquer reserva política ou mesmo ética. A convivência do sistema com este relativismo ético talvez explique as dificuldades de recorrer aos processos de legitimação. E daí que as eleições não sejam o primeiro argumento, quando se trata de desbloquear uma situação política em que os três pilares do Estado democrático estão sob suspeita. Como acontece no Brasil.