As máquinas de guerra de Paul Verhoeven
Um cinema de máquinas de guerra, personagens em perda de interioridade e memória, de coisa humana que se tacteie. Amoral este anti-herói Indie, com retrospectiva no IndieLisboa a partir de dia 20 com Robocop
No dia 3 de Março de 1945, Paul Verhoeven tinha sete anos e ficou com a guerra impressa na retina. E resultou assim: ele era intocável. Os aliados bombardeavam intensamente as posições alemãs em Haia, Holanda, erros de cálculo fizeram o impacto das bombas atingir bairros residenciais, a família de Paul desagregava-se nas ruas. Os pais desapareceram subitamente na confusão. Não morreram. Escaparam ilesos, porque se meteram debaixo de um viaduto. Paul viu-os regressar como um happy end! Não é a guerra o maior efeito especial de todos?
A criança que foi o britânico John Boorman dissera o mesmo (numa conversa com o Ípsilon, o ano passado) e filmou essa parte da sua biografia em Esperança e Glória (1987), um tipo de filme que Verhoeven gostaria de ter realizado. Não realizou um filme assim tão explicitamente autobiográfico, mas disse, citado por Rob van Scheers numa obra que lhe dedicou em 1996 (Paul Verhoeven), que, se os pais tivessem morrido, toda a sua vida teria sido diferente. Isto é, todo o seu cinema teria sido diferente, porque todo ele decorre daquele explosivo efeito especial que o deixou incólume — mas com danos colaterais de relativismo moral.
A criança Verhoeven continuou a alimentar a infância de fantasia e aventura com os filmes americanos que inundaram a Europa no pós-guerra. E continuou a ser com “manobras de guerra” — de que outra forma haveria de ser? — que se encaminhou definitivamente para os filmes: incorporado na Marinha holandesa, foi destacado para o serviço de cinema e propaganda. Anos mais tarde, já profissional e autor do maior sucesso de bilheteira do cinema holandês, Delícias Turcas (em 1973 um em cada três holandeses vira esse filme), realizou Soldier of Orange/O Soldado da Rainha (1977), outro dos seus títulos famosos — a Los Angeles Film Critics Association considerou-o o melhor filme estrangeiro desse ano. Ali Rutger Hauer, actor que ele descobriu, dizia: “A bit of war might be exciting.” Que outra coisa poderia dizer?
Quando não se olha ao espelho
Quem é Rutger Hauer em Soldier of Orange? Chamou-se Erik Hazelhoff Roelfzema, foi piloto na II Guerra, soldado da rainha Guilhermina da Holanda, seu ajudante no exílio em Inglaterra durante a ocupação alemã, escreveu autobiografia, contou os seus feitos. Verhoeven adaptou-os com o mesmo sentido de inviolabilidade que lhe ficara gravado na retina (War on Retina é, explique-se, o título do capítulo em que Rob van Scheers na sua obra encontra a que talvez seja a “cena original” da personalidade e do cinema do holandês). Fica sempre no ar em Soldier of Orange, até pela panache de Hauer, que o heroísmo é coisa de gesto gráfico e para Erik (para Verhoeven?) a guerra e a aventura são um estado natural do homem. E se Erik ficou do lado dos “bons” foi por contingências e não pela solidez de convicções morais. Podia ter deslizado e trocado de lugar com os amigos da elite que tiveram, cada um, destinos diferentes — O Soldado da Rainha é um “filme de grupo”, com retrato final a sinalizar onde cada um se perdeu. Poderia ter sido colaborador dos alemães, como Alex (Derek de Lint), com quem dança numa daquelas sequências de titilação homoerótica com que Verhoeven sempre gostou de provocar, mas que é, literalmente, a forma de coreografar a inevitabilidade do deslize, a dança dos valores.
Entre o apelo da aventura, que faz das personagens máquinas de guerra em risco de perderem uma interioridade que se tacteie, e um momento de possibilidade de humanização (em vários dos filmes há um “O que sou eu?” que é a ressonância funda do mais coloquial “Qual é verdadeiramente o teu nome?”), vai ser excitante esta aventura pelo cepticismo de um dos HeróisIndie deste ano. Há um filme que realizou nos EUA, um dos piores, Hollow Man (2000), em que Kevin Bacon, gozando das suas patifarias maléficas como homem invisível diz: “Nem imaginam o que se pode fazer quando não se tem de olhar ao espelho!” Vamos fazer mais do que imaginar...
O ciclo contempla exibição de todas as longas, a fase holandesa e a americana (Robocop, de 1987, o filme que o fez atravessar o Atlântico, abre o ciclo, a 20). Com excepção do mais recente Elle (2015), com Isabelle Huppert, que está a causar um frisson de comeback — porque é também um (re)encontro do cânone crítico com a obra do realizador, como se pôde ver pela capa que a revista Cahiers du Cinéma dedicou ao cineasta em Novembro, depois de, com poucas excepções, ter andado a fazer fine bouche ao que considerava um cinema vulgar, ordinário e, quiçá, fascizante (nesse sentido, o comeback é o da crítica).
Elle estará ausente do programa de Lisboa, Verhoeven, 77 anos, anda em manobras de promoção com a estreia francesa marcada para Maio, a seguir à previsível passagem pelo Festival de Cannes, por isso é duvidoso, segundo os organizadores do Indie, que se possa deslocar ao festival português.
Ausentes, entre outras coisas, estão ainda dois documentários que podem sinalizar a vitalidade e as contradições do cinema do realizador. Em 1965, realizou um filme sobre a Marinha holandesa, obra de promoção para ajudar nas campanhas de recrutamento, Het korps Mariniers (1965). Conta-se que o fez como quem realizava um filme de acção americano e que em vez de gritar “Acção!” gritava “Ataque!”. Em 1970 realizou outro, uma tentativa de retrato de Anton Adriaan Mussert, líder do Partido Nacional Socialista holandês, que teve expressão durante a Depressão e que alimentou o ideal de entronização pessoal quando os nazis entraram pela Holanda (figura trágica, porque Hitler reduziu-o à sua real dimensão quando isso aconteceu). Foi executado no final da guerra, em 1946, por colaboracionismo. Nos anos 70 os historiadores começavam a aventurar-se pelos esqueletos no armário da pacata Holanda e do seu papel na Guerra e na deportação de judeus para o extermínio. Verhoeven quis também entender as razões dessa(s) figura(s) do(s) traidor(es), em vez de demonizar liminarmente. Quis colocar no processo de entendimento da História os que tinham sido excluídos por traição — os que escolheram o lado “errado”. Já se viu como o fez, na ficção, em Soldier of Orange, mas é preciso contar ainda com O Livro Negro, o primeiro filme europeu depois do regresso de Hollywood, que é uma história de amor entre uma activista da resistência, judia (Carice van Houten), e um oficial alemão (Sebastian Koch). O encontro começa por ser trabalho undercover, mas a excitação toma conta do dever da operacional. A personagem de Carice, que é gémea da de Rutger Hauer no outro filme, começa a paramentar-se cada vez mais como uma Jean Harlow apaixonada. Já não para disfarçar o judaísmo, mas para alimentar a aventura e o desejo, como se a máscara da fatalidade se concretizasse nela com toda uma verdade. O amor só é possível no perigo da guerra, a paz vai ser a condenação, e a personagem de Carice diz uma coisa terrível: “Nunca pensei ter tanto medo de ser libertada [pelos aliados].” Ela “viu” o que lhe ia acontecer, como traidora.
O choque com a América
A personagem de Carice é uma das muitas mulheres “máquinas de guerra” — são quase sempre elas, lúdicas, ofegantes — do cinema de Verhoeven. Antes dela houve Monique van de Ven em Keetje Tippel (1975)e Renée Soutendijk, em Spetters/Viver sem Amanhã (1980) e em O Quarto Homem (1983). Robocop é um filme sobre um homem, mas tira as aspas à máquina de guerra, é filme de explicitação: o polícia, que se chama Murphy, regressa dos mortos como superpolícia de constituição metálica, a máquina já a ocupar a humanidade, criação da fome justiceira, de violência e de vingança das massas, como se se tivesse transformado em criatura-espelho. Até que alguém lhe pergunta: “Mas como te chamas?” Numa das sessões a que Verhoeven assistiu, a audiência antecipou-se em coro uníssomo: “Murphy!”
Depois dele, novamente as mulheres, Sharon Stone (Instinto Fatal, 1992) ou Elizabeth Berkley (Showgirls, 1995), claramente anunciadas antes por Renée Soutendijk, mas em versão extremada. Robocop é um filme decisivo por ter estado nessa fronteira: é o choque com a cultura americana, com a televisão e com o espectáculo (durante muito tempo a única maneira de o estrangeiro Verhoeven conhecer o país). É uma violentíssima sátira, com muito de Carpenter de série B e do pessimismo de Fritz Lang a corroer o blockbuster que não podia ser menos reaganiano. Foi o momento de Alice frente ao espelho na obra do holandês, a partir do qual tudo seria magnificado, distorcido, cheio de efeitos de eco. Como se verá, depois do embate, Verhoeven acabaria por vestir a camisola,
Autor ou não autor
Hesitou antes de aceitar o projecto, mas a sua relação com o meio cinematográfico local tinha chegado a um impasse: responsável por vários sucessos comerciais que punham a pequena “indústria” holandesa em movimento, era acusado de não ser suficientemente “autor”, querela e polémicas sempre esquemáticas, com o mesmo tipo de jargão que deve ser endémico nas cinematografias — como a portuguesa — que não podem ter dimensão de indústria. Acossado, respondia que não havia razão para alguém tentar ser um Fellini holandês.
Dito isto, andava há muito a ver-se como realizador à Hollywood — há quem conte que vestia para cada rodagem um tipo diferente de excentricidade, estava em leather durante Spetters (filme sobre motards), em chic decadente à la Bryan Ferry em O Quarto Homem, filme tão obcecado em demonstrar as suas referências arty como Instinto Fatal coleccionou, como bibelots, momentos Hitchcock. Por outro lado, vários dos filmes holandeses pareciam ecos, pouco acidentais, algo calculistas, mas nem por isso menos desarmados, de êxitos internacionais e do espírito do tempo que se marcava: Delícias Turcas (1973) está para Love Story (Arthur Hiller, 1970) como a solidariedade para com os proletários de Spetters (de 1980, espantoso retrato de grupo sem saída do odor pegajoso da gordura, da batata frita, uma das revelações do ciclo) está para Febre de Sábado à Noite (John Badham, 1977) ou Blue Collar (Paul Schrader, 1978) — tudo personagens e forma de as olhar que desapareceram do cinema contemporâneo.
Até nos escândalos e nas polémicas, a América amplificou a Holanda: uma cena de sodomia em Spetters, a “fixação fálica” do filme, originou movimentações e protestos, como aconteceria com Instinto Fatal (1992) com as pressões de grupos homossexuais contra o que consideravam ser clichés de representação negativa de personagens gay (Verhoeven mandou-os ver O Quarto Homem e a forma “natural” como tratara personagens homossexuais). E depois as acusações de que com Showgirls ele não tinha sido mais do que um ginecologista.
O que talvez este ciclo possa propor é que foi na indústria americana, com os seus códigos próprios, que o europeu Verhoeven se expandiu como autor. O que é uma história antiga, esta de europeus que, dentro do espartilho de Hollywood, trabalham de forma ardilosa os seus temas e obsessões. No caso de Verhoeven, a América serviu de câmara de amplificação: ele gritou-os. Os seus dois filmes máximos, as obras-primas, são americanos e são sobre a América: Starship Troopers (1997) e Showgirls.
Com o primeiro, quis fazer uma espécie de O Triunfo da Vontade (Leni Riefenstahl) apócrifo ou uma sátira a isso, ninguém sabia bem o que era, estúdios e actores. Viram acção intergaláctica com toques de teen movie, mas não viram a dimensão política, retrato de uma civilização entranhada de ideais de pureza e de fascismo — o que faz dos grandes planos de Casper van Dien ou Denise Richards, os jovens e assexuados actores, algo tremendamente embaraçoso, como a prova de um delito, de uma violação (o realizador a roubar-lhes o que eles não sabem que estão a dar).
Mas a plenitude chama-se Showgirls. A proposta é ver este filme, recordista em 1996 dos Razzies, os prémios para os piores do ano (sete), sem o culto do guilty pleasure. Por favor, não! Elizabeth Berkley é um Robocop de saias em Las Vegas. Chama-se Nomi, mas o seu verdadeiro nome é Polly Ann, e quando sabemos isso já percebemos que os devaneios de fábula desta Pollyanna são em si uma distorção e ela vai continuar a ser corrompida no mundo amoral de Las Vegas — e a corromper o que lhe resta de idealismo e de moral.
Verhoeven fez um contrato com o estúdio para entregar um filme NC17, a classificação para adultos, o que na altura era inédito para um filme mainstream — como disse, era-lhe indiferente chocar as pessoas, não queria era ficar chocado consigo mesmo por se censurar. Chamaram várias coisas ao filme, Nudity Sells, Showgirls Smells, ao realizador, Sultão do Choque, mas o que espanta é o esplendor, estridente, sim, mas de gestos formais amplos e definidos, corajosamente abraçando a agonia do espectáculo americano, tal como no cinema do final da década de 50 de Cukor, Minnelli ou Logan. Showgirls está com a sua personagem de forma feroz e obscenamente realista (a aliança com a sujidade de Spetters) e ao mesmo tempo generosamente fantasista (como se Nomi fosse uma Judy Garland em Oz). Vale a relatar o que conta Ron van Scheers sobre aquela noite de 1996, no Blossom Room do Roosevelt Hotel, em Los Angeles, quando Verhoeven apareceu, coisa inédita, para receber a colecção de Razzies. Depois de concluir que na Holanda os seus filmes eram considerados “decadentes”, “perversos” e “manhosos” e que em Hollywood eles eram “decadentes”, “perversos” e “manhosos”, a única conclusão a tirar era que estava em casa. E que “essa desonra” significava que tinha sido aceite na “grande sociedade americana”. Dizer que o anti-herói só ironizava é não ver the big picture.